segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Joga fora


Quando tu tiveres caixas e mais caixas de dias difíceis guardados, em que cada hora parecia uma eternidade de angústia, em que o ar era pesado demais para se respirar, em que o cheiro de tristeza estava impregnado em cada foto, em cada página, respira fundo, acha coragem e joga fora.
Quando tu estiveres arrumando tuas gavetas da lembrança e encontrares documentos de maus negócios, anotações de planos que não deram certo, sonhos não realizados, sementes que não germinaram por causa dos maus ventos, fecha os olhos, sem temer, e joga fora.
Quando tu olhares as fotos encrustadas nas paredes da tua memória e perceberes que algumas esmaeceram, perderam as cores, tornaram-se retratos em sépia ou em preto-e-branco, e os rostos já não são os mesmos, já não dizem as mesmas coisas, já não representam o que já foram por conta do trabalho incessante do presente, desprega-as e joga fora.
Tudo o que vivemos nos transformou e continua nos transformando, isto independe de que guardemos ou não. E guardar com muito apego nos impede de assimilar, de transformar em nosso proveito.
Hoje, joguei tanta coisa fora... Mas nada disso, nem por isso, vou esquecer. Apenas joguei ao vento as energias, para que se renovem. Se remoemos o passado, andamos pra trás.
Arruma tuas coisas, revisita teus baús, tuas gavetas, as paredes da tua memória. E tudo que já não serve, joga fora. Faz bem.

(Danilo Kuhn)


domingo, 23 de dezembro de 2012

Férias de mim



Aqui, onde as horas não passam. Aqui, onde o tempo não me vê. Aqui, onde a rotina não me enxerga. Aqui, onde preocupações esvanecem. Aqui, onde os sonhos adormecem. Aqui, onde o passado não vem à tona. Aqui, onde as amarguras não me sorvem. Aqui, onde a inveja não alcança. Aqui, onde o trabalho não impera.
Vez em quando, tiro férias de mim. E fico aqui, distante, ouvindo o murmurar constante do riacho, degustando a brisa e seus aromas silvestres, mastigando o tempo, bebendo as horas.
A rotina mastiga, sem pressa, dia a dia, vida e viver. O mundo perde as estrelas da noite, o gorjear matinal, as matizes do crepúsculo, a dança das nuvens, as flores, a lua, a poesia.
É claro que assim como não existe noite sem dia, som sem silêncio, luz sem sombra, também não existe férias sem trabalho. Mas tudo há de ter seu tempo. Um ciclo.
Por isso, hoje tirei férias de mim. Não penso, não calculo, não faço planos. Tudo a seu tempo. E é tempo de férias. Dar-se férias de si mesmo é um ato de desprendimento momentâneo, necessário para renovar as energias, revigorar-se, reanimar-se, reviver-se.
Dá-te férias a ti mesmo, ainda que por apenas alguns dias. Certos distanciamentos nos aproximam. Boas férias!

(Danilo Kuhn)


segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Uma crônica para o fim do mundo


Antes que o mundo acabe, eu vou amar como se não mais pudesse. Como se não houvesse amanhã, como na verdade não há, ao menos nunca deveria haver. A medida de amar é amar sem medidas, sem poupações, sem ressalvas. Amar plenamente, como se fosse a primeira vez, como se fosse a última vez.
Antes que o mundo acabe, eu vou trabalhar incansavelmente, como se fosse a última oportunidade de atingir minhas metas. O trabalho dignifica o homem e eu quero terminar dignamente. O trabalho é o amor por aquilo que se faz tornado visível, palpável.
Porém, antes que o mundo acabe, eu também vou me dar horas de lazer, roubar algumas voltas dos ponteiros do tempo para meu usufruto sereno, usar da paz do mundo para pacificar meu espírito, e entender que nem só de trabalho se vive. Momentos roubados de Cronos são o nosso combustível para escapar dele. Um passeio de mãos dadas, um banho de mar purificante, uma sesta após o almoço à sombra de uma árvore, o vento no rosto.
Antes que o mundo acabe, eu vou lutar pelos meus sonhos, pelos meus ideais, como se somente hoje eu tenha poder de persuasão para convencer o mundo de que eu estou certo. Amanhã será tarde, muito tarde.
Antes que o mundo acabe, eu vou perdoar a quem me tem ofendido, magoado, ferido, assim como vou me perdoar por também ofender, magoar, ferir. O perdão começa em perdoar a si mesmo.
Antes que o mundo acabe, eu vou ser um bom equilibrista para equilibrar corpo e mente, trabalho e descanso, ilusão e brilho no olhar, esperança e atitude. Devemos colocar tudo na balança, e usar de seus pesos-padrão para equilibrar as coisas.
O mundo sempre acaba amanhã. Amanhã sempre é tarde. Viver o hoje sempre potencializa-nos. Amar hoje, trabalhar hoje, descansar hoje, lutar hoje, sonhar hoje, perdoar hoje, equilibrar-se hoje, viver hoje.
O amanhã não há. Só o hoje vive. Vive hoje, e sê feliz.

(Danilo Kuhn)


segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

"Ao Mestre, com carinho"!


Quando ainda no ventre da nossa mãe, donde talvez possamos ter as primeiras lembranças ou sensações, experimentamos e desfrutamos do carinho e do amor dos nossos pais ao acariciar-nos imersos no líquido uterino, recolhidos ao imenso barrigão, onde aprendemos as primeiras lições de afeto.
Quando nascemos, dão-nos umas palmadinhas no bumbum, ensinando-nos, ao primeiro choro, a respirar sem fazer uso do cordão-umbilical, bem como recorremos ao seio materno, quando a ele entregues, para alimentarmo-nos tendo já tolhido o laço à altura do umbigo.
Depois, aos poucos, os pais ensinam-nos a mastigar, a gatinhar, os primeiros passos, as primeiras palavras, contar até dez, a bicicleta-de-rodinha, enfim, uma infinidade de aprendizados nos é passada de pais para filhos, os quais nos preparam para seguir adiante.
Em seguida, vem a escola, propriamente dita, onde vamos aprender a ler, a escrever, a desenhar, a pintar, a estudar, a pensar, a conviver com as diferenças, a sofrer com elas também, mas tudo é aprendizado. Professores se revezam em importância para nós, a alguns guardamos com carinho, a outros lhes esquecemos ou por vontade própria ou por terem passado por nós sem deixar marcas. Colegas também são importantes nesta relação de ensino-aprendizagem, nos dão o bom exemplo do estudioso ou do aplicado, nos dão o mau exemplo do bagunceiro ou do brigão ou do desinteressado. Amigos também tomam parte importante de nossa formação haja vista que nem todos os colegas são amigos, e nem todos os amigos são colegas, e não passamos o dia inteiro na escola, também temos a nossa rua ou bairro ou prédio ou condomínio. Tem também os parentes, primos e irmãos, acabam nos sendo amigos, ou somente colegas de família.
Também temos os nossos professores do amor, do amor de homem e mulher, ou de menino e menina, que geralmente os temos desde a infância e de diversas formas. Os namoricos de criança, que por mais inocentes que sejam, nos ensinam. Os amores platônicos de adolescente, nunca correspondidos, sempre inspiradores. O primeiro beijo. A primeira vez. Ninguém nasce sabendo. A tudo se aprende. De tudo nos ensinam.
Em verdade, é vivendo que se aprende, com a vida, esta vitalícia professora incansável, que nos aprova e reprova sem restrições, que aplica provas-surpresa, que tem seus próprios métodos de avaliação, que não se restringe a uma única tendência pedagógica, que nos pede a mão à palmatória, que nos escreve à lousa com seu giz de sangue e suor, que nos cobra o conteúdo e nos aconselha, que nos castiga e nos dá amor sem reprimendas, que nos conhece e nos faz conhecer-nos. Nossa formatura é ao longo do processo, e quando ficamos realmente prontos para os seus propósitos, concluímos a escola da vida, ou talvez somente mais uma etapa do ensino de Deus, levando conosco sabe-se lá para onde nossos cadernos de anotações, toga e diploma, deixando de herança apenas novos alunos, filhos nossos, para frequentarem a mesma escola, as mesmas salas de aula. Resta-nos agradecer: “Ao Mestre, com carinho”!

(Danilo Kuhn)


segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

"Fechar os olhos"


Quando alguém passa por mim na rua e me pergunta as horas, e eu educadamente e sorridente respondo, e este alguém apenas segue seu caminho sombrio por entre os seus escuros, sem agradecer com palavra ou gesto ou expressão, eu fecho os olhos para ver a luz.
Quando alguém que me conhece me vira a cara na rua, em notória embriaguez de desdém, após alguns segundos sem chão eu fecho os olhos para retomar o caminho.
Quando alguém se diz meu amigo e me apunhala pelas costas com suas mentiras e palavras envenenadas, com seu jogo moribundo de sorrisos de plástico e abraços ocos, eu fecho os olhos para cicatrizar as feridas.
Quando alguém me serve o cálice do ódio, desejoso de compartilhá-lo, de afetar-me com seu vício, de embriagar-me de cólera para cair em sua armadilha, eu fecho os olhos para manter a sobriedade.
Quando a inveja alheia bate à porta, intentando adentrar a casa sem pedir licença e levar consigo tudo de bom que há lá dentro, a roubar-me meu trabalho e meus sonhos, eu fecho os olhos para não abrir a porta.
Quando o ciúme ameaça me consumir por dentro, acenando possibilidades improváveis, remoendo o passado acrescentando-lhe pitadas de suposições nocivas e de imagens daninhas, eu fecho os olhos para olhar o presente.
Fecho os olhos porque já os abri o suficiente para enxergar o que eu não queria ver, o que eu preferiria não saber. Fecho os olhos porque já perdi a ilusão de um mundo feito apenas de amor, amizade, companheirismo, cooperação, união, educação e outros sentimentos e atitudes boas. Porém, fecho os olhos também para manter o brilho no olhar, o pouco de encantamento que ainda me resta.
Como é bom encontrar uma pessoa extremamente agradável, ou educadíssima, ou muito culta, ou que esbanje simpatia sem ter segundas ou terceiras intenções. Mas a pequenez humana é maioria. E, como vivemos em uma democracia...

(Danilo Kuhn)


segunda-feira, 26 de novembro de 2012

"Abrir os olhos"



Uma espera larga gravita na sala, se expande de parede a parede embora as conversas e o arrastar de classes e cadeiras intentem roubar-lha espaço. Nota-se um olhar vagueante, como a percorrer toda a extensão da esperança que paira. E eis que o ar se dissipa de rompante, causando um estrondo apenas ouvido por quem esperava, espécie de excitação que a chegada de quem se espera provoca no espectador, Chegou o professor, exclamou o aluno a si mesmo novamente, Chegou o professor.
Figura alta, gigantesca ao olhar do franzino aluno de dez anos, era o imponente professor de ombros largos que um abraço assombraria, de mãos grandes que num aperto de mão caberia o mundo. Quando se tem pouca idade, as pessoas adultas e as coisas parecem imensas, pessoas de estatura avantajada são gigantes olhados de baixo, a escola, um vasto palácio com seus labirínticos corredores e salas insondáveis. Depois que se cresce, e cresce também a visão de mundo, se percebe quão pequeno se era, tanto num tamanho quanto noutro, para deixar-se enganar assim pelas dimensões. Mas o professor tinha a habilidade de apequenar-se a cada abraço que estendia aos pequeninos que se lhe abriam os braços, a cada suave aperto de mão que oferecia aluno por aluno poucos instantes depois de adentrar à sala de aula, bem como mais parecia um coleguinha de classe quando explicava o conteúdo no dialeto infantil.
Professor àquela aula fê-la inesquecível, não somente para o saudoso aluninho, a classe toda jamais a esqueceu. A turminha ainda estava agitada, a aula era depois do recreio, e Professor abraçou quem lhe queria abraçar, cumprimentou aos alunos um a um, estendendo-lhes uma das enormes mãos, como de costume, mas a seguir apenas sentou-se contemplativo, em silêncio. Seu sorriso era curto, mas profundo, misterioso, mas revelador, mudo, mas falava tudo. Aos poucos, os alunos foram acalmando-se, aquietando-se, deixando-se experimentar o silêncio que Professor falava. Quando a turma toda calou-se, paralisada e ansiosa pelas primeiras palavras, o aluno da espera larga não conteve-se e indagou Professor, Tu não vai falar nada. Professor respondeu-lhe a ele e à turma, Mas eu já to falando desde que eu entrei na sala, e o disse sem alterar expressão. Os alunos olharam-se, ainda sem compreender àquelas palavras, quando Professor prosseguiu, Hoje a aula é sobre o silêncio. O mesmo aluno da primeira pergunta, já impaciente, alegou, Mas o silêncio não é nada. Não é não, sentenciou Professor, e propôs, Eu quero que vocês fiquem quietinhos por cinco minutos, eu vô contar no relógio hein, e depois a gente conversa. Os alunos, ainda muito novinhos para tal, não conseguiam chegar ao entendimento de como aquilo viria a ser uma aula, O professor tá loco, pensaram alguns, mas fizeram o que Professor pediu, ficaram em silêncio, olhando para todos os lados, rindo-se sem saber do que.
Passados os cinco minutos combinados, quando Professor fez sinal, ora veja-se, o mesmo inquieto aluno, aliviado, perguntou em voz alta, mais por aflição de passar tanto tempo sem falar do que por outro motivo, E agora professor. E Professor, Eu é que pergunto pra vocês, o que vocês aprenderam. A turma ficou ainda mais desconcertada, e muitos alegaram, Nada, né sor. Professor seguiu, emendando perguntas, Vocês tem certeza, vocês não viram nada, vocês não ouviram nada. Uma inafastável excitação de descoberta atingiu-lhes todos os pequeninos corações, corando-lhes a tenra pele da cútis, e puseram-se a falar desorganizadamente, cada qual intentando ser-se o primeiro atendido. Professor permaneceu em silêncio, à espera do mesmo a sala de aula, até que o aluno inquieto aquietou-se e, como num sinal disto, levantou a mão para pedir vez. Professor atendeu, Silêncio meus queridos, ele vai falar primeiro. E o aluno disse, Eu vi os teus olhos de cansado, professor, tu tá cansado né. Obrigado por perguntar, disse Professor, ninguém tinha me perguntado isso hoje. O aluno entendeu que através daquele silêncio havia pela primeira vez reparado no semblante cansado do querido professor, e que o professor alegrava-se pela sua preocupação, com certeza este aluno tentará reparar mais nos semblantes dos seus queridos, a fim de adivinhar-lhes o estado. Depois, Professor passou a vez para uma menininha, que disse, Professor, eu ouvi um carro passando e um cachorro latindo, e o som dos dois começaram juntos, passaram juntos, e terminaram juntos, eu acho que era o meu pai de caminhonete com o meu cachorro em cima, ele sempre vai junto com o pai pro centro, na carroceria, com a cabecinha por cima do capô pra pegar bastante vento, tanto vento que as orelhinhas dele ficam bem pra trás e os olhinhos puxados, parece um japonês, hihihihi!. E Professor, sorrindo, disse, Muito bem, querida. E assim passaram-se os minutos, fartos de exemplos de sons que começaram-se a perceber, expressões de rostos a repararem-se, sorrisos a notarem-se, aromas a achegarem-se ao olfato, texturas a tatearem-se às pontas dos dedinhos, cartazes temáticos de sala de aula a saltarem-se aos olhinhos, e muitos mais exemplos de percepção e sensibilidade suscitadas ludicamente pela atividade silenciosa do professor.
Ao fim, Professor arrematou, Dizem que o silêncio vale mais do que mil palavras; eu não sei se isso é verdade, mas eu sei que ele faz a gente “abrir os olhos”.

(Danilo Kuhn)


segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Escravos do passado


Foi numa gélida manhã de agosto, um agosto severo, a geada trincava o pasto e o negro apertava o passo, sumia na imensidão... E, consigo, os pés descalços, castigados... Junto às correntes de aço levava, no seu encalço, as chagas da escravidão.
A manhã, na Casa Grande e resplandecente de austeridade e imponência, despertava espanto e alarde e os de coração débil e covarde davam início à caçada. Foge o negro, o animal... Sim! Tratavam-no como tal... – “Nasce pra ser serviçal, não tem alma, não tem nada”.
Na verdade, mero estratagema! O branco que impunha algemas, sem ter pudor nem pena, ante o escravo era inferior. Pois aquele que escraviza e que cativa é que não tem alma... a precisa! Não vale o chão onde pisa! Não honra ao nome Senhor...
...E o Senhor da Sesmaria de crueldade sorria um sorriso canino, pois até o fim do dia teria sangue nas mãos... – “Se dentro das minhas terras algum negro desgraçado se desgarra, eu trago de volta é na marra, sob severa punição”!
E, de fato, era um açoite... Por três dias e três noites, dê-lhe ferro quente e chicote e intermináveis torturas... E, mais cedo ou mais tarde, dependendo de sua sorte, encontrava-se co´a morte a sofrida criatura.
E o negro bem sabia da soberba e tirania do Senhor da Sesmaria, da monarquia em seu trono de sangue e suor alheio. Num ato de valentia, que a coragem é mais um homem, deu-se a própria alforria, naquela manhã tão fria quanto à alma do seu dono.
Escafedeu-se o vassalo e nenhum branco a pé ou a cavalo jamais conseguiu achá-lo na vastidão impenetrável da pampa... Dizem que, lá no rincão, os puros de coração, em manhãs de cerração, inda veem sua estampa... Quanto à velha Sesmaria, da soberba e tirania, hoje é terra e moradia pros descendentes de escravos. E à família do Senhor, por semear tanto horror, não sobrou nenhum valor... Do passado são escravos!

(Danilo Kuhn)


segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Café-passado


Demorei muito para dormir, mas agora consegui e de repente me vi aqui, guardando o seu sono. Você não me vê, mas me sente quando acaricio o seu rosto nessas visitas noturnas que lhe faço enquanto durmo.
Minhas mãos luzidias deixam transparecer sua pele enquanto lhe toco a alva face envolta em brumas róseas e celestes do alvorecer que já não tarda. Lágrimas alaranjadas de luz do sol descaem das frestas da janela prenunciando o dia que nasce e o amor que se põe ao passo que começo a despertar, a abandonar seu leito onde lhe velava o sono.
Aos poucos minha alma retorna ao corpo, entorpecido de sua ausência. Enquanto desperto, ainda posso sentir o calor do seu rosto nos meus dedos e o torpor do seu perfume dançando a me enlevar. Mas à medida que a consciência vai recobrando de si, fica mais difícil desvelar o emaranhado de sensações impregnadas à essência do espírito, deixando-se apenas adivinhar pelo brilho do olhar, ainda um pouco embaçado de sono.
Xícaras de café, água no rosto, claridade, ardis que a alma finge aceitar como verossímeis para devolver ao corpo os reflexos e os sentidos necessários ao dia. No entanto, nos recônditos, o pano-de-fundo dos pensamentos me sussurra o seu nome em meio à névoa do cotidiano.
As imagens que a alma contempla em sonhos ela guarda em nós de forma insondável, mas inegável. Não percebemos que nosso inconsciente é nossa alma, consciente, a nos guiar, sob o codinome do acaso. Temos um inconsciente vivo dentro de nós. Escuta?!

(Danilo Kuhn)


segunda-feira, 5 de novembro de 2012

A turma do coelhinho Eusébio



Eusébio era um coelhinho sabichão que adorava ler. Em sua toca podiam-se adivinhar estantes repletas de livros, prateleiras abarrotadas de literatura e de poesia. A biblioteca do coelhinho Eusébio era de dar inveja a qualquer colecionador aristocrático, havia poesia de Dante à Quintana, romances de Victor Hugo à Saramago. De cenoura em cenoura, Eusébio passava seus camponeses dias a mergulhar naquelas páginas que o levavam além.
Mas nem só de cenouras e leituras vivia Eusébio, que adorava passear pelo bosque e sentir o cheiro das uvas madurando e dos moranguinhos silvestres. Gostava de dar bom dia ao sol, às árvores, às flores, aos demais animais da floresta, e gostava também de fazer novos amiguinhos.
Foi assim que um dia o coelhinho Eusébio aproximou-se de uma turminha de amigos que passeava pela floresta, assustando os passarinhos de tanto que esbanjavam energia e fôlego para as brincadeiras e para as conversas que não cessavam.
-  Oi amiguinhos! Eu sou o coelhinho Eusébio! Vamos brincar?
De pronto, as crianças fizeram amizade com o coelhinho, quase o deixando tonto de tantas perguntas e assuntos e conversas paralelas e gritos de felicidade e cantaroladas intercaladas de risadas.
Depois de brincarem por horas, Eusébio decidiu convidar os novos amigos para conhecerem sua casa e sua biblioteca. No entanto, as crianças, a princípio, não acharam muito divertida a ideia dada pelo coelhinho, de todos lerem um pouco depois do café da tarde. Eusébio então sentiu aquela necessidade de incentivar e cultivar a arte da boa leitura... Abriu uma das gavetas de sua cômoda, da qual cintilava uma luz amarelada e muito brilhante, com fachos púrpura e celeste... Desta gaveta retirou quatro livros e os entregou a cada uma das crianças. E disse o coelhinho Eusébio:
- Cada livro é uma janela que se abre para um mundo encantado e desconhecido a nos convidar para conhecê-lo.
As crianças brilharam os olhinhos e cada uma abriu uma janela para um novo mundo. A Letícia se viu como uma criança rica nadando no dinheiro e gastando sua fortuna em roupas e joias caras para descobrir, no fim da história, que mais vale ser rica de amigos e de aventuras. O Felipe leu sobre um menino fã que finalmente conseguiu conhecer seu ídolo, uma cantora que se mostrava antipática e muito chata quando não estava sendo filmada, além de deixar claro que fazia seu trabalho apenas por dinheiro, quando o menino descobria que nem tudo é magia no mundo da televisão e que as pessoas mais importantes para nós são aquelas que nos amam. O Rodrigo mergulhou numa aventura de tirar o fôlego, sobre futebol, onde o herói da história aprendeu a respeitar mais as diferenças, inclusive em se tratando de rivalidades esportivas. E o Gabriel, o único quietinho da turma, se deixou levar por uma comédia hilariante, na qual o personagem principal era muito tímido e, aos poucos, aprendeu a se expressar mais e se divertir com os amigos.
- Cada livro é uma janela que se abre para um mundo encantado e desconhecido a nos convidar para conhecê-lo, repetiu o coelhinho Eusébio...


(Danilo Kuhn)





segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Amanhã, quando eu morrer



Amanhã, quando eu morrer, vou enganar o mundo num aceno vago, despedida falsa.
Quando eu te disse “eu te amo”, nestas palavras te entreguei meu coração.
Quando eu te pedi “por favor”, neste momento te alcancei minha esperança.
Quando eu te disse “obrigado”, ali te dei minha gratidão.
Quando eu te roguei “vem comigo”, contigo reparti meu medo.
Quando eu te convidei “fica comigo”, contigo dividi minha solidão.
Quando eu te disse “meu amigo”, trocamos lealdade e amizade.
Eu não vou partir, pois já me reparti com vocês, assim como não vou sozinho, vou com todos vocês.
Amanhã, quando eu morrer, vou continuar vivendo em vocês, e vocês vão morrer um pouco em mim.

(Danilo Kuhn)


segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Por entre as flores



Por entre as rosas veio o vento a falar de amor, seu perfume e seus espinhos. Do rubor que seduz ao passo que cega, do aroma que cativa porque embriaga, dos espinhos que instigam, pois privam.
Por entre os lírios veio o vento a falar de Deus, suas dádivas e sua espada-de-fogo. Da fé que move montanhas porque acredita, da esperança que é a última que morre, pois espera.
Por entre as árvores-em-flor veio o vento a falar da vida, seus sabores e dissabores. Das raízes que garantem sustento orgânico e moral, da semente donde a vida rebrota, dos frutos que se colhe e os que caem de maduro.
Por entre os crisântemos veio o vento a falar de morte, seu ponto final, nova linha e travessão. Da ausência do ente-querido na cadeira vazia, no catre frio, da presença daquele na ausência que se nega a ausentar-se.
Por entre as flores fala a poesia num sopro quase inefável. Por entre as flores brilha a luz dos olhos dos apaixonados. Por entre as flores conversam a mãe gestante e o filho que gesta. Por entre as flores o silêncio canta uma canção. Por entre as flores estrelas beijam gotas de orvalho.
De que adiantaria a primavera, se não se pudesse estar por entre as flores?


(Danilo Kuhn)



domingo, 14 de outubro de 2012

Quando o giz acaricia a lousa


Quando o giz acaricia a lousa, sussurrando palavras brancas, olhinhos brilham tanto de curiosidade que seria um pecado chamar-lhes a-lunos, sem-luz.
Quando o giz acaricia a lousa, piso ou teto salarial tornam-se piso e teto da sala de aula que o professor transforma em reino de riquezas impalpáveis.
Quando o giz acaricia a lousa, cada descoberta é uma janela que se descortina, uma porta que se abre, e um abraço que acolhe.
Quando o giz acaricia a lousa, o silêncio se transforma em palavra, a penumbra se ilumina, a verdade ganha força, caem as mordaças, desatam-se as vendas, desvelam-se os véus.
Quando o giz acaricia a lousa, benévolas iscas fisgam o interesse da classe com seus anzóis de luz.
Misto de pai e mãe, professores dão asas mas advertem dos maus ventos, dão o peixe mas ensinam a pescar, estendem a mão mas encorajam a andar-se por si só, abraçam para confortar mas aconselham, ofertam a luz do conhecimento mas incentivam ao brilho próprio. O professor contempla a magia do ensinar, e com isto também aprende, quando o giz acaricia a lousa.

(Danilo Kuhn)


segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Coisa de criança


Quando eu era criança, pensava que quando trovejava era porque o Papai-do-céu estava brabo, talvez por alguma travessura minha... Meu pai me dizia que não era por isso, que na verdade era um fenômeno físico, ou alguma coisa assim. Mas eu preferia pensar que o Papai-do-céu estava brabo comigo, e eu ficava horas pensando, tentando descobrir o que tinha feito de errado, pra poder pedir perdão e parar de trovejar...
Quando eu era criança, gostava de pular as sombras das árvores no asfalto quando eu saia de carro com meu pai. Iam as rodas da frente primeiro, pulavam, e depois, quando essas tocavam no chão, as detrás é que pulavam, fugindo das sombras, pulando de luz em luz. Passava a viagem inteira fugindo das sombras, buscando a luz, sem contar nada pra ninguém...
Quando eu era criança, gostava de mirar com os olhos nos bandos de passarinhos que voavam da beira da estrada quando o carro passava. Mirava e atirava em um por um, não errava um tiro. Eles não caíam, não morriam... Era só de brincadeira. E apenas eu sabia como atirava bem com meus olhos...
Quando eu era criança, pensava que o mundo era em preto-e-branco antes de ser colorido, assim como as fotografias e os filmes antigos. E era lindo ver os vários tons e matizes cinzas, a profundidade das sombras e das paisagens. Certo dia, Papai-do-céu teve a divertida ideia de colorir as coisas. Deve ter começado com o pôr-do-sol e depois com o amanhecer; depois derramou verde sobre os campos e azul sobre as águas e o céu. Então, aos poucos, foi colorindo as frutas, as flores, os animais, as gentes... Só depois coloriu as fotos e a televisão...
Mas isso tudo é coisa de criança. Em verdade, não há encanto algum numa tempestade nem ninguém nos vigiando do cimo das nuvens, não é possível desviar das sombras do caminho e caminhar somente pela luz, nossos olhos não têm poder, e as coisas sempre foram coloridas como hoje são.
Espere... Você não está escutando? Eu estou escutando uma voz, de criança, que vem de dentro de mim, e ela me diz, Não, você está errado, não perca o encanto da vida, não deixe de buscar sempre a luz, não deixe de olhar as coisas com os olhos da alma, nem aos pássaros, nem às pessoas, nem às cores.
Existe uma criança dentro de cada um de nós. Não deixe que a aspereza e sujeira do mundo a macule e a sufoque. Ver o mundo com encanto, fantasia, esperança e amor, isto é coisa de criança.

(Danilo Kuhn)



terça-feira, 2 de outubro de 2012

Quando chove lá fora


Um trovão ressoa longe, com sua voz grave, num prenúncio de aguaceiro. Parece que o campo inteiro se aquieta, à espera. A brisa que soprava leve paralisa e o ar se amorna. As folhas das árvores param de dançar. As águas dos riachos correm mais lentas, caminham. O gado pasta calmamente, disfarçando que sabe do tempo. Em verdade, o campo sabe que não há como escapar e apenas se prepara. E nem quer escapar: o campo sempre está com sede, bebe da chuva.
Um raio se desprende do meio da tempestade, riscando o céu à ponta-de-espora e tinindo as cordas do alambrado ao pontear seu violão. O horizonte se emburra e a tarde mormacenta vai ganhando noite. O temporal chega à revelia de palma-benta ou cruz-de-sal. A oração do campo à espera da chuva é mais forte que as das casas onde se cobre o espelho da sala. A tormenta atormenta as casas, não o campo. A brisa, de paralisada, ganha asas e se torna vento forte. O ar amornado se agita e se refresca aos primeiros pingos. As folhas vibram de alegria e se banham, mandam a poeira embora. As águas dos riachos tomam corpo e volúpia. Os animais se abrigam do perigo, mas contemplam a bênção. O campo é uma prece, pela dádiva da água da chuva agradece. A aparente violência da natureza é entendida como pressa pelo campo. A água da chuva encharca a terra, alaga o campo, arrebenta taipas, transborda rios e abre outros nas coxilhas, estoura bueiros, leva por diante estradas, pontes, plantações, mas a água da chuva mata a sede do campo e da mata, verdeja pasto e folha, rega flor e erva, afresca fruto e broto, sacia fauna e flora, abastece açude e rio e entranhas da terra de onde a água rebrota nas cacimbas e verte nas vertentes. A água irriga sementes, germina a terra, louva a lavoura, garante o sustento, sustenta casa e galpão.
Quando chove lá fora, o campo se banha nos banhados, viaja pelos rios, bebe das sangas e açudes, goteja nas folhas das árvores, floresce nos jardins, amadurece nos frutos, se refresca na brisa, brinca de esconde-esconde pelas vertentes debaixo da terra... O campo lava a alma, quando chove lá fora.

(Danilo Kuhn)




terça-feira, 25 de setembro de 2012

Vamos construir?



E foi Dona Aranha a tecer na linha das horas sua obra-de-arte em forma de trama e armadilha. Que caçador é capaz de caçar assim com tamanha beleza? A presa com pressa, sem olhos pra arte, ficou presa. O bicho-homem na obra interviu. Por ânsia de destruir, destruiu.
E foi Dona Formiga a construir seu armazém de areia de corredores, depósito e escritório. Abriu picadas e assentou estradas, juntou estoque pra enfrentar o período de entre-safra, agregou trabalho, não mediu esforços, trabalhou em cooperativa. Que associação é capaz de funcionar assim com tanta eficácia? O bicho-homem na empresa interviu. Por ânsia de destruir, destruiu.
E foi Dona Abelha de flor-em-flor a buscar matéria-prima pra fabricar seu produto. Vasculhou todos os jardins, vistoriou todas as árvores-em-flor. Cada operária numa direção, todas de volta pra mesma colmeia, pro mesmo reino. Em seu Gabinete Real, a Rainha saboreia o seu reinado que governa com autoridade e austeridade, isto lhe apraz. Que Estado governa assim com tal competência? O bicho-homem no reino interviu. Por ânsia de destruir, destruiu.
Vamos construir? Deixar de ver no outro um rival, de pensar a vida como uma competição, de achar na felicidade e no talento alheio motivo pra inveja, de destruir toda e qualquer possibilidade de união, de cooperação, de entendimento, de trabalho em grupo... Destruímos laços familiares, amizades e coleguismo, relações de afeto, patrimônio público, teias-de-aranha e obras-de-arte, formigueiros e ambientes de trabalho, colmeias e governo...
Sigamos o exemplo da natureza, bicho-homem... Vamos construir?


(Danilo Kuhn)


terça-feira, 18 de setembro de 2012

Mateando solito



Sorvo os primeiros raios de sol do amanhecer enquanto a pampa desperta despacito, como quem mateia solito. O amargo do mate me traz recuerdos de esbarradas e boléus que o potro xucro do destino me deu pelos rodeios da vida... E foi cada rodada, de levantar polvadeira...
Na gineteada do amor, tentei de toda sorte não ir ao chão, mas a cada galope, cada paixão, o tombo da saudade insistiu em me quedar do lombo... Me aconcheguei com a solidão, que em mim se aquerenciou, que só a água do mate me aquece o coração...
Na gineteada da vida, por ser redomão, nunca aceitei cabresto de patrão, e apesar da guaiaca na rapa, mais me valem hoje honra e orgulho em ordem do que meia-dúzia de cobres... Nunca me faltou coragem pra peleia, por mais que a parelha fosse feia. Nunca levei desaforo pra casa, por mais que a adaga da vida me desse pranchaço e talho...
Na gineteada da morte, china maleva que no horizonte me espera, dou boca ao potro-destino sem sofrenar, solto as rédeas e me vou de peito aberto pra onde eu deva ir... Já vivi muitas primaveras e sei que o Patrão Velho lá de cima sabe o meu tempo e minha hora...
Mas ao matear solito não me sinto assim tão só. Tenho o cusco debaixo do banco, enrodilhado, parceiro de lida e rancho, que vez em quando abre um dos olhos pra me espiar... Tenho o mate que me aquenta e me aviva a memória, rememorando histórias minhas que apesar de amargas vou sorvendo aos poucos... Tenho o rancho que eu mesmo ergui com meu suor e trabalho e que me abriga nas invernias com pelego e fogo e nos temporais com palma-benta e cruz-de-sal... Tenho a bicharada em volta que vive no seu mundo, mas me empresta companhia no meu... Mais adiante tenho o galpão onde as lembranças de fogo-de-chão e cantoria de cordeona e violão ainda povoam as paredes de madeira empoeirada... Meu gateado me espreita do potreiro e por certo mateia comigo...
O sol já sorveu toda noite e toda névoa que cobria as coxilhas, e agora aquenta como a água do mate. É hora de acordar pra o dia e deixar minhas noites na erva lavada. Ainda tenho lida pela frente. O meu peito agora quente já sorveu seus amargos e começa a sentir o doce aroma da manhã de mais uma primavera. É hora de encilhar e de seguir, venta-aberta, pela pampa já desperta. É hora de sobrar cavalo. Sou gaúcho e não me achico pra esse tal potro-destino.


(Danilo Kuhn)


terça-feira, 11 de setembro de 2012

É lá fora que eu me vingo do tempo



Tiro os óculos-escuros para ver as cores reais que dançam do outro lado do para-brisa do carro, os incontáveis tons de verde e marrom e bege entre pasto e árvores e coxilhas que quanto mais distantes mais pendem ao azul do céu e mais perto dele chegam, o azul do céu com suas nuvens brancas que mais parecem pinceladas sfumato de Da Vinci e véus de noiva em dégradé ao vento... A poeira da estrada-de-chão alaranjada empresta um efeito especial quando se antepõe à paisagem e lhe esmaece, vários sóis surgem cada um em um açude que se apresenta à visão iluminando ainda mais o dia e as cores, sinuosos riachos serpenteiam água pura e cristalina a verter do ventre da terra e sua mata-ciliar também serpenteia o campo a declarar sua presença e seu caminho...
Lá fora eu não uso relógio, apenas o sol com seus ponteiros de luz me orientam durante o dia e a lua com sua colcha de estrelas durante a noite. Se o dia ou a noite está nublada ou chuvosa, a relação de tempo é outra, bem mais lenta e flutuante... É lá fora que eu me vingo do tempo que me sufoca me impondo cada vez mais trabalho, ganância e responsabilidade... É lá fora que meus amigos cães me mostram o valor da amizade e da lealdade que não há nas relações humanas de forma assim tão inocente e sincera... É lá fora que um casal solitário de colhereiros cor-de-rosa-salmão num banhado me ensina sobre cumplicidade e fidelidade... É lá fora que as tartarugas da taipa do açude têm a tranquilidade de tomar banho-de-sol e as vacas e bezerros a confiança de se achegar às casas no final da tarde...
Lá fora, nem a mais venenosa das cobras tem a peçonha da inveja, nem a mais ardida das ortigas dói tanto quanto o desprezo, nem o mais fundo açude representa o perigo das esquinas, nem a mata mais fechada desorienta como o trânsito, nem a noite mais escura amedronta como a solidão das multidões...
É lá fora que eu me vingo do tempo. Lá, as horas não me alcançam, a ampulheta não me escorre, o relógio não me governa. Não sei como Cronos me enganou por tanto tempo...


(Danilo Kuhn)


segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Selva de pedra



Mas que floresta estranha é essa? Eu vejo luzes, cores e flores artificias... Sorrisos de plástico brotam feito erva-daninha e demoram uma eternidade para se decomporem, não são biodegradáveis. Aqui o tempo passa tão depressa que sufoca, devora, e a manada já não sabe aonde vai por não ter pr’onde ir. Por instinto, são todos iguais, aonde um vai, vão todos, ainda que seja p’ra lugar algum.
Tem relva e árvores de concreto, jardins de aço, veredas de asfalto, e a brisa cheira à óleo diesel, pneu queimado e gasolina. Há rios de esgoto à céu aberto onde peixes de garrafa-pet e de papelão mergulham em água turva. No horizonte acinzentado, são nuvens de fumaça a neblina que se ergue e que rarefaz o ar.
Nessa floresta habita o homem coração-de-pedra, em seu habitat artificial, a contar vil metal. Como quem ateia fogo em sua própria casa, ele destrói a si e a tudo em volta, queimando o ar, turvando o céu, nublando a água, ferindo sentimentos e cortando laços. Volta-se contra sua natureza ao desmatar a vida e superaquecer ganância, ao cultivar rosas-de-hiroshima e plantar a guerra e a morte de irmãos. Um autogenocídio, assassinatos em série de si mesmo, suicídios em massa.
E a floresta de pedra não para de crescer... Estende suas raízes por quilômetros, que aqui e ali emergem da terra para se alastrar aos brotes, ramos, troncos, galhos de concreto e metal. Suas sementes viajam milhas e milhas com os ventos quentes e malcheirosos, semeando cinzas e consumindo verdes.
A selva de pedra tem pressa, atropela. Ela te quer, quer teus filhos, teus netos, teus cachorros, gatos e toda e qualquer criação ou plantação, animais silvestres, quer pomares, hortas, pastagens, sítios, chácaras, fazendas, estâncias, léguas de terra, sesmarias, mata virgem e floresta tropical. Ela tem fome de campo e de verde, sede de água pura e cristalina, poças, poços, sangas, açudes, valos, marachas, riachos, arroios, rios, lagoas, mares. Ela não se sacia nunca. Ela vai te engolir. E não há gruta que te proteja, não há mata que te refugie, não há buraco que te esconda.
A selva de pedra está chegando, ela vai te encontrar, vai te seduzir e depois te trucidar. O fim está próximo, e não há salvação, pois ninguém pode te salvar de ti mesmo, ninguém. De que adianta orares a Deus por mudança enquanto tu fechas os olhos aos teus erros, vaidades e mediocridades? A selva de pedra está chegando. E ela vai te petrificar. E serás apenas mais um entre todos coração-de-pedra.

(Danilo Kuhn)