segunda-feira, 26 de março de 2012

Eles querem que sejamos rasos


     Cada ser é um universo único. Habitam, dentro de cada um de nós, galáxias desconhecidas de sentimentos, planetas inexplorados de maneiras de ver o mundo, constelações de ideias, e um vácuo infinito a ser preenchido pela felicidade e pelo amor. Há, nas profundezas de cada pessoa, bem lá no âmago do ser, uma configuração única de corais e cores, abismos inóspitos e planuras arenosas, grandes paredões rochosos e pequeninas algas semitransparentes, e incontáveis formas de vida. Quanto mais profundo o ser, mais vida abriga, mais imensidão o habita.
         Existem muitas coisas que nos aprofundam. A arte, em geral, nos aprofunda. É um aprofundar-se não só no mundo, mas também em si mesmo. Quando lemos um bom livro ou poema, alargamos nossa visão de mundo e nossa sensibilidade, mas também expandimos nosso âmago, adentramos mais em nós mesmos. Quando ouvimos uma boa música, deixamo-nos tocar pelas peculiares combinações de sons, silêncios, e texturas: ritmo, melodia, harmonia, timbre, dão forma e força a um idioma que não se compreende, mas se sente e se entende cada um à sua maneira. Quando vislumbramos uma pintura, ou um desenho, ou uma escultura, ou um bom filme, cada cor, traço, forma, cena, dá corpo à imaginação do artista e aguça a nossa: nos ajuda a imaginar-nos e projetar-nos para além de nós mesmos, mas nem por isso fora de nós – o mundo lá fora é somente uma extensão de nós. E quando começamos a perceber que a arte é, antes que obra do homem, obra de Deus, o Grande Criador, estamos preparados para notar a sinfonia dos bichos, o balé das águas e das árvores, a batucada dos pingos da chuva, as esculturas das nuvens e as mais belas telas de cada arrebol. Nos tornamos tão profundos e imensos quanto à própria Obra de Deus, da qual fazemos parte.
Mas não é isto o que eles querem. Eles querem que sejamos rasos. Para tanto, nos jogam anzóis, anzóis com iscas quase irresistíveis e das mais variadas. E vamos lá, em cardumes, enfeitiçados pelo verniz da armadilha, até acabarmos por fisgados. Por vezes, nos malham em redes transparentes, nos arrastões cotidianos. Noutras, somos abatidos literalmente por arpões, que violentamente nos abatem e nos deixam à sua mercê. Vamos nos tornando cada vez mais rasos, até que ficamos sem ar, sem vida, emergidos numa superfície superficial: um rio de peixes mortos, todos iguais, nadando todos na direção que o rio quer.
É difícil resistir à isca. É difícil não seguir o cardume. Porém, quanto mais profundo se está, mais difícil de se ser pescado. Tanto a arte, quanto o amor, são maneiras de nos aprofundarmos em nós mesmos e no mundo a ponto de estarmos seguros, longe do alcance dos anzóis.
Todos nós temos liberdade de ir a qualquer lugar, em qualquer direção, seja rumo às nossas profundidades ou para dar uma espiadela na superfície. O importante é que esta liberdade deve ser vigiada por nós, e não induzida pelo verniz das iscas que nos oferecem.
Não te esquece: eles querem que sejamos rasos.

(Danilo Kuhn)


terça-feira, 20 de março de 2012

O BBB


 Em tempos de reality shows inócuos, detenhamos nossa atenção à vida real de um personagem que não faz o tipo e nem é foco da audiência de um BBB.
O Bruno Brasil nasceu pobre, na periferia de Porto Alegre, no cinturão da cidade. À sua volta, em vez de câmeras, modelos plastificadas e mocinhos bombados, a realidade nua e crua. Seu pai faleceu quando o Bruno ainda era uma criança: após mais uma noite inteira de cachaça, o Seu Olavo afogou-se na sarjeta, em frente à casa do Bruno, que assistiu pela manhã, atônito, a algazarra da vizinhança, ambulância e tudo mais. Sua mãe, a Dona Lurdes, sempre fez das tripas coração pela vida do falecido marido e dos nove filhos, dentre eles o mais novo, o Bruno. No entanto, as quatro meninas engravidaram pela primeira vez já na pré-adolescência; três delas apanham do atual marido, e o último marido da outra morreu esfaqueado por traficantes, por conta de uma dívida. E os demais quatro meninos, exceto o Bruno, caíram todos no mundo do crime e das drogas: dois morreram em tiroteios com a polícia e dois morreram espancados por viciados em busca de mais pedra, quando se encontravam no último nível de dependência do crack.
Mas o Bruno era diferente. Era daquelas almas iluminadas que nascem num mundo inferior para emprestar sua luz aos que dela tanto necessitam. E o Bruno fez diferente, fez a diferença...
O Bruno teve a mesma educação e tratamento em casa, estudou na mesma escola pública e teve as mesmas condições financeiras miseráveis e os mesmos problemas familiares que seus irmãos, mas nutria dentro de si uma vontade incontida de alargar seus horizontes. Aos oito anos começou a aprender teoria musical e flauta doce em um projeto em turno inverso em sua escola, o que não o impedia de ajudar sua família vendendo balas nas sinaleiras. Na escola, também fez cursos de violão, poesia, participava do projeto de canto coral e de toda e qualquer oficina de instrumento musical.
O Bruno nunca desdenhou sua origem humilde e a cor da sua pele, mas sempre pensou com sua cabeça e elaborou seu próprio gosto artístico-musical. Aos poucos, foi se interessando pela leitura: buscou livros de poesia, de história, grandes clássicos da literatura, de filosofia, e de política. Aprendeu a ter uma visão crítica, sensível e realista sobre o seu mundo e o mundo lá fora. Nunca desprezou o hip-hop, o rap, o samba, o grafitti, mas percebeu que vários dos projetos desenvolvidos para preservar a cultura de periferia mascaravam a segunda intenção do voto à cabresto. Por que não estudar a música e a arte em sua totalidade? Por que ficar preso às amarras periféricas, se o mundo acena lá fora com um céu aberto de possibilidades artísticas e de vida?
Cursou faculdade de música e tornou-se professor, sempre paralelamente trabalhando e ajudando sua família. Nunca se importou em trabalhar: acreditava que trabalhar era criar, assim como Deus vê o trabalho. Foi engraxate, gari, garçom, faxineiro, vendedor de roupas e caixa de supermercado. Atendia às pessoas como se fossem seus amigos, seus filhos.
Mas foi num curso de extensão do Conservatório que encontrou sua paixão. Aliás, suas duas paixões: o clarinete e a professora inglesa de clarinete. Casaram-se e o Bruno foi viver na Inglaterra. Aprendeu respiração circular com um aborígene australiano e tornou-se o mais notável e incrível clarinetista da mais conceituada orquestra do Reino Unido.
Este ano, sua irmã mais velha o inscreveu, secretamente, para o Big Brother, para uma vaga sorteada, com a intenção de premiar o seu irmão-herói. Para a surpresa de todos, o Big Bruno Brasil, como é conhecido no Reino Unido, foi sorteado. E para a surpresa de todos, o Bruno recusou-se a participar de um show ilusório, exatamente como ele não vê a vida.
Histórias semelhantes à do Bruno, o nosso BBB, estão por aí a fora, a ornamentar o mundo. É só olhar para o lado. Muitas vezes, a janela da tua casa mostra histórias mais bonitas e verdadeiras que a telinha da TV.
Se esta história é verídica? Ouvi dizer que para uma história ser real, basta contá-la...

(Danilo Kuhn)


terça-feira, 13 de março de 2012

Quando nos fazemos vidro



Você me deixou sem visão, quebrou meu olhar. Estranha sensação. Logo eu que me julgava tão forte, agora estou aqui, em cacos. Me fiz tão frágil quanto uma vidraça. Nos deixamos quebrar quando nos fazemos vidro.
Agora, cada passo é calculado. É como caminhar às escuras num lugar desconhecido: passo a passo, pisando em cacos, os demais sentidos aguçados. Parece que fiquei mais forte... Estranho: se as aparências me enganaram, nada mais se parece.
Nenhum gesto eu aceno em vão. Não cometo exageros. Tudo medido. Eu sempre tenho os pés no chão, passo a passo, pisando em cacos. Quando se perde a visão, se presta mais atenção aos pensamentos, se diz e se faz melhor dito e melhor feito.
O brilho mentiroso das palavras já não me convence mais: suas roupas são outras; escuto as entrelinhas... Quando se perde a visão, se ouve cada trejeito, cada expressão, cada silêncio, cada respiração.
O cheiro do vento me traz notícias, é o meu jornal. Denuncia, a quilômetros, quem se aproxima e sua intenção. Quando se perde a visão, se percebe o idioma do olfato, se fareja o perigo, a oportunidade, a presa, o predador, a dança das árvores e do riacho.
Decoro cada rosto pelo sabor de suas atitudes. Pessoas doces, educadas, pessoas amargas, amarguradas. Quando se perde a visão, o paladar descobre temperos improváveis.
Tateio lembranças, acaricio amores, abraço ausências, golpeio remorsos. Sinto escorrer por entre os dedos o tempo que perdi e o que ainda me resta. Quando se perde a visão, novas texturas vêm fazer parte do contexto.
Cada perda dá algo. Cada derrota conquista algo. Cada vez que se cai é uma oportunidade para se levantar. Cada vez que nos deixamos quebrar é uma oportunidade para nos refazermos, nos reinventarmos. Quando se quebra o olhar, se amplia a visão de mundo. Se fica mais forte quando nos fazemos vidro.

(Danilo Kuhn)