sábado, 26 de maio de 2012

Feliz aniversário!


cada aniverso, começamos a escrever um novo verso do nosso poema ao universo. Um verso metrificado, de doze sílabas. No entanto, a poesia transpõe a barreira do tempo e faz com que as medidas temporais sejam sentidas de acordo com seu teor poético: dias sem rima, semanas de palavras ocas ou meses de imagens inócuas passam desapercebidos de nossa leitura; porém, um segundo de paralisia por ver a pessoa amada a sua frente, instantes de brilho no olhar decorrentes de um inesperado elogio, um abraço que teima em negar a ausência do abraçador, ou até mesmo minutos de drama ou tragédia alargam sua duração, ultrapassam os ponteiros do relógio, violam nossa percepção.
Algumas presenças não se ausentam, apenas prenunciam um próximo encontro. Após dias e dias, continuamos a abraçar aquele abraço, a saborear aquele beijo, a tocar aquela pele. Poesia do amor.
Algumas presenças nunca estão presentes, pois as tornamos ausentes quando não estamos realmente presentes. Pessoas em outra sintonia, com ideias totalmente avessas às nossas. Pessoas ignorantes ao respeito, intolerantes à diferença. Nem ouvimos sua voz, apenas respondemos suas perguntas de maneira a tentar encerrar urgentemente o assunto. Sequer as vemos, pois nosso olhar não as percebe como elas aparentam ser, e sim como elas são para nós: insignificantes. São poemas sem poesia. Letra morta.
Algumas presenças são um presente, mesmo enquanto ausentes. Suas presenças agradáveis ficam guardadas, aconchegadas dentro de nós que nem notamos sua ausência ou, se notamos, sua presença interior nos conforta. A poesia nos conforta.
No entanto, às vezes temos que nos contentar em conversar com uma ausência, e acreditar que a saudade é só uma maneira de guardar. Junto com uma presença-ausente, nos abstraímos para um tempo paralelo, onde podemos torná-la presente num lugar em comum. A poesia nos transporta.
A cada aniverso, portanto, temos a oportunidade de planejar o próximo verso. Ainda que cada verso em si guarde uma relação com os anteriores, da mesma forma ele estabelece a relação com os versos porvir. É certo que o planejamento muita vez não dá certo, ou então a inspiração nos leva a mandar pra longe o planejado e ouvir a voz do coração. Porém, a cada aniverso, a cada troca de verso, temos uma linha em branco que anseia pela poesia da vida. O teu poema ao universo, assim como aguarda pelo teu próximo verso, te dá a oportunidade de escrevê-lo... Inspira-te!
Hoje é meu aniversário. Hoje aniverso. Hoje converso comigo a fim de começar a escrever o próximo verso do meu poema ao universo. O vigésimo-nono verso. Não me preocupo muito com rima, ou com a norma culta, gramática, semântica, ortografia, ou reforma ortográfica. Tampouco me esmero à procura de metáforas inéditas, rimas raras, estilo. Repito termos, os emprego ou desemprego sem aviso prévio. Apenas escrevo de peito aberto a poesia do meu coração e a poesia que meus olhos veem no mundo ou gostariam de ver. Que meu vigésimo-nono verso contenha a poesia que não se contém e a inspiração que não se doma. A mim mesmo, feliz aniversário!

(Danilo Kuhn)


terça-feira, 22 de maio de 2012

Desencanto


Era a Época de Ouro dos circos. Companhias circenses percorriam cidades, estados, países, encantando a homens, mulheres e crianças com sua magia e novidade. Havia atrações de toda espécie e de toda parte, números famosos e surpresas extraordinárias ao público, animais exóticos, trapezistas, malabares, corda-bamba, palhaços e cantores-palhaços.
Alfredo era cantor, um cantor-palhaço que como tantos da época usava o picadeiro como palco, visando ser conhecido pessoalmente pelo público e também galgando uma boa fonte de renda. Ele já havia se aventurado pelas rádios em São Paulo, mas o brilho do prestígio e da glória circense e o dinheiro e o sucesso o levara a seguir o rumo dos circos pelo interior do Brasil.
Alfredo era muito talentoso. Deus havia lhe presenteado com o dom do canto para encantar multidões. Sua voz potente intimidava, ao passo que a suavidade de sua interpretação enchia ouvidos e corações de ternura. No entanto, assim como cada provação que Deus nos impõe é um teste para nossa alma, cada presente d’Ele também o é... Alfredo cegara ante o verniz da fama, e já não via nada ao seu redor que lhe importasse que não fosse o seu sucesso e o dinheiro...
Nos bastidores, longe da plateia, Alfredo tinha amigos, parceiros musicais que lhe ajudavam das mais variadas formas. Lhe escreviam canções, lhe oportunizavam o contato com outros artistas, lhe emprestavam sua arte, e muitas vezes até mesmo lhe presenteavam canções para que ele tomasse para si a autoria das mesmas. Além disso, devotavam a ele amizade sincera e leal. Um deles, Camilo, filho de João – o maior parceiro de Alfredo –, era um jovem mais esforçado que talentoso mas, ainda assim, era uma criatura boa e um bom artista. Não tinha a voz de Alfredo, nem o verso de seu pai João, mas era um rapaz sensível, criativo e profundo em suas cançonetas.
Acontece que um dia, sem aviso prévio e explicação, Alfredo decide trocar de circo. Uma das canções de João, em parceria presenteada com Alfredo, fez um sucesso tremendo e levou Alfredo a uma ganância extrema que, por conveniência econômica, inclinou João a negar a seu filho Camilo a oportunidade de mudar também para um circo maior e melhor. Alfredo e João, ainda que o último se sentisse um pouco arrependido, seguiram viagem e deixaram o jovem Camilo para trás, naquele circo já sem o brilho que prendesse Alfredo.
O tempo passa, o mundo dá voltas, Alfredo e João retornam ao convívio de Camilo que, renitente, apesar das novas parcerias musicais entre os três, passa a ter sempre um pé atrás com seus parceiros. Por que haviam lhe deixado? Sua arte não era suficientemente bela ou funcional? Ou apenas não se enquadrava às expectativas dos seus parceiros quanto ao seu trato a colegas ou superiores?
Camilo era extremamente simples, avesso a tratar seus colegas e superiores com falsas e envernizadas palavras, sorrisos de plástico e atitudes demasiado servis. Mas era feliz em sua simplicidade, ao passo que Alfredo, envolvido por nuvens de egoísmo e ambição, longe de seu teatro-da-vida-real que representava no palco e nos bastidores, era amargo e infeliz.
O tempo passa, o mundo dá voltas, e a história se repete: mais uma vez Alfredo tolhe Camilo em nova promissora empreitada musical; mais uma vez o pai João se omite, em nome da amizade e lealdade que ainda vê, não se sabe como, em Alfredo.
À noite, em sua cama de feno, com as botas sujas de casca de arroz e de barro do chão do circo, cansado do trabalho e da vida, Camilo reflete. Ilusão ou realidade, ele sai de si, não é mais ele, e então olha para si deitado na cama e percebe que, às vezes, um pouco de desencanto é bom. Só o desencanto é capaz de nos revelar o que há por detrás da ilusão. A ilusão é uma máscara que nós mesmos colocamos na face da realidade, quando não a queremos ver. O iludido não consegue ver o mundo em que vive, nem a si mesmo. O desiludido, apesar do amargor da desilusão, sabe onde pisa, sabe com quem lida. Apesar de ser difícil para um artista - que faz do encanto sua matéria-prima - lidar com o desencanto, Camilo haverá de aprender. E isto haverá de fazê-lo crescer como homem e como artista, pois, desencantado, é mais fácil de se buscar o encanto verdadeiro.

(Danilo Kuhn)



sexta-feira, 11 de maio de 2012

Trabalho de Mãe


tua mãe, na escola vera da vida, é dos filhos a educadora; escreve com o giz do conselho na lousa do tempo; é regente de classe e de lar com sua batuta de condão. Seu instinto maternal não difere alunos e filhos: são da mesma família.
A tua mãe é o esteio da cidade; cuida da terra e de todos lá fora. Lavora na lavoura: majestade e seu reino. Planta sementes de carinho; as rega, aduba, poda, cuida. Sabe dos ventos, das chuvas, dos temporais, e dos dias de sol como ninguém. Sua colheita é sempre farta, pois cuida das plantas como filhos e vice-versa.
A tua mãe é a rainha do lar. Seu trabalho é ficar perto; olhar nutrir e educar dos seus com carinho e afeto. Luta e labuta todo o dia todos os dias: é um exército de uma mulher só. Suas armas? Garra e coração.
A tua mãe entrega num instante as encomendas, mesmo aquilo que não há em vendas, tal carinho confortante, ou amor sem reprimendas... O comércio do Carinho de Mãe não respeita as regras do capitalismo: nada do que se vende tem um preço, nada que se compra requer dinheiro... É um dar receber mútuo onde o interesse de um é o bem-estar do outro.
A tua mãe é a tua guia cuidosa. De natureza protetora, acolhe debaixo de suas asas aos seus, mesmo que distantes estejam. Sua presença onipresente pressente cada passo em falso, cada deslize. Seu ninho está sempre preparado para um pouso forçado de um passarinho arrependido de voar sem rumo...
A tua mãe, quando põe as doces mãos sobre aqueles que seus são, retira as amarguras do coração. Seus confeitos, feitos de amor, adoçam a tua boca e as tuas palavras. A tua mãe conhece todas as receitas das tuas guloseimas prediletas, e não as deixarão faltar na tua vida...
Enquanto a tua mãe cirze a vida, cuida da família inteira costurando, com linha de conselheira, a toda ferida. Sua máquina de costura trabalha a todo pano. Para toda dor, ela conhece o remendo.
A tua mãe sabe de cor, e com alegria, o seu dever como senhora da sua casa e da sua família. Arranja... Enfeita... Magia de mãe.
Mãe trabalha com o amor. Carinho é a sua mão-de-obra e a sua matéria-prima. Mãe é uma operária de Deus, e trabalha diretamente com Ele: é através da Mãe que Deus dá a vida. Mãe dá a luz, ilumina. Mães são meio-anjo e meio-mulher; e apesar de alguns pecadilhos que porventura possam vir a cometer ao longo da vida, pois são meio-humanas, com certeza terão sido cometidos em nome do amor. Amor de Mãe, trabalho de Mãe...

(Danilo Kuhn)


segunda-feira, 7 de maio de 2012

Nada é por acaso II (baseado em fatos reais)


No início deste ano, o Prof.º Gabriel, professor de História de um renomado colégio particular de sua cidade, foi à primeira reunião com os pais dos alunos. Chegando ao amplo-e-lustroso-e-acolchoado salão de convenções, esmerou-se para alcançar vista a seus colegas-amigos. Não os encontrou. Não haviam ido à reunião. Apenas colegas mais distantes, menos achegados, estavam presentes. Eram professoras mais velhas, mais conservadoras, menos dadas às brincadeiras extrovertidas do Prof.º, às quais, inclusive, já haviam feito reprimendas ao pé do ouvido da Direção.
O Gabriel era jovem, há pouco formado, cheio de ideias, de alternativas pedagógicas joviais, carismático, brincalhão... Seu dinamismo fisgava a atenção dos alunos. Piadista, vivia a importunar seus colegas, inclusive às mais senhoras, propositadamente, pois folgava em vê-las incomodadas com sua alegria e disposição. Não debruçava os minutos de recreio sobre futilidades, ou em reportagens queixosas de experiências pedagógicas ou de vida frustradas, ou nas preocupações com a carga horária e a vida alheia. Agradava-lhe mais conversar sobre filosofia, arte, política e história com seus achegados, sempre com notas de ironia e humor.
Naquela reunião, suas colegas senhoras encontravam-se bem vestidas além do costumeiro. O Gabriel, introvertido, apenas observava: o tamanho dos saltos não rimava com o peso da idade; o rouge dos batons e os tons arcoirísticos das sombras não atenuavam o siso das faces; as saias e os decotes não condiziam com o moralismo pregado no colégio. Logo lembrou de sua colega e amiga, a Carlinha, professora de Literatura, que sempre reparava nas vestes não adequadas das senhoras... Ela iria se divertir ao presenciar tal desfile... Lembrou também do Gérson e do Luís Antônio, professores de Filosofia e de Artes, sarcásticos e tenazes em seus comentários ácidos sobre as sisudas e pouco receptivas senhoras. Sim, o Gabriel e seu grupo de amigos, todos novatos no colégio, não gozavam das boas-vindas das veteranas. Lamentou mais uma vez a ausência de seus amigos, mas logo sua atenção fora chamada para uma outra situação.
Um casal de pais encontrava-se meio escanteado. Um casal preocupado com seu filho. O Prof.º Gabriel atentou mais um instante e reconheceu o menino, filho do casal, que havia ido junto à reunião. Era o Alexandre, menino muito querido, mas um tanto desestimulado, de aparência não tão bem apresentada quanto os demais alunos, assim como seus pais não aparentavam ter o mesmo poder aquisitivo – ou a mesma preocupação em parecer ter elevado poder aquisitivo – que os pais dos demais alunos. O Prof.º, então, incomodado com a situação, foi até o casal e o menino para conversar.
Ficou sabendo, para sua grata surpresa, que as aulas das quais o menino mais gostava eram as suas. O Alexandre gostava muito de ler. Ele participava de um projeto de música, tocava flauta transversa na banda do colégio, mas como havia repetido de ano no ano passado, foi cortado do projeto. Conversa vai e conversa vem, o professor procurou encontrar várias maneiras de estimular o aluno a estudar, a aprender sobre o mundo, a ler sobre música, arte, história, a procurar material de suporte como partituras para seu instrumento, livros sobre flauta transversa e história da música, biografia de grandes flautistas, grandes artistas, grandes homens, tentando demonstrar ao Gabriel que todo sonho existe em nós porque é um desejo nosso, e assim sendo, precisamos ir atrás deles para nos sentirmos felizes, no caminho certo. Os olhos do menino rebrilharam. A reunião terminou tão rapidamente quanto um piscar de olhos, e professores, pais e alunos foram para suas casas e suas vidas, mas o Prof.º Gabriel, o menino Alexandre e seus pais saíram da reunião com aquela sensação boa de ânimo renovado e vontade de viver que dá na gente sempre que encontramos pessoas boas que nos transformam, nos revitalizam.
Semana passada, o Prof.º Gabriel foi à Faculdade de História da cidade vizinha, onde havia passado no concurso para Professor Substituto, a fim de pleitear com o Vice-Diretor uma declaração de não-colisão de horários, já que gostaria de manter suas 20 horas no colégio particular aos assumir as 40 horas na faculdade. Era uma tarefa complicada, o acerto dos horários e a consequente liberação da declaração, já que o Gabriel morava numa cidade, trabalhava no colégio particular numa segunda e a faculdade era numa terceira. Para sua grata surpresa, o Vice-Diretor era o pai do menino Alexandre, o seu aluno do colégio. Apesar do profissionalismo inerente ao cargo, o senhor fez grande esforço para ajustar a situação e ajudar o Gabriel.
O Prof.º Gabriel, de posse da declaração tão importante após o reencontro com o pai do Alexandre, descendo as escadas da faculdade onde começaria em poucos dias a trabalhar, sentiu mais uma vez aquela sensação boa de ânimo renovado e de vontade de viver, e lembrou para si mesmo o quão bom é ser uma pessoa boa, deixar as pessoas com um sorriso e tratá-las com carinho. Ainda que as senhoras colegas no colégio não entendam suas brincadeiras e bom humor, ele não se deixará esmorecer. Agora ele tem certeza de que está no caminho certo, rumo a seus sonhos, e que a recompensa vem uma hora ou outra através do merecimento. Afinal, nada é por acaso...

(Danilo Kuhn)