quinta-feira, 26 de julho de 2012

O sorriso da lua


Inebriado de poesia, apaixonei-me pelo sorriso da lua. Sorriso disfarçado por véus de nuvens que velavam sua forma mas lhe emprestavam o mistério de uma luz detrás da cortina. Sorriso noturno de alumbrar coração perdido em noites de solidão madura e crua a perambular por tabernas úmidas e desabitadas de amor. Sorriso inacessível que sorri mas nega seus lábios aos reles mortais entregues aos vícios da carne e cegos à resplandecência do espírito. Sorriso preciso, na medida certa do que eu preciso. 
Aquela moça tem o sorriso da lua. Seus cabelos lisos e negros dançam sobre sua boca e lhe velam os lábios sutil e escandalosamente levando-me a querer cada vez mais desvendar o seu sagrado mistério. A noite que lhe envolve lhe realça o lume e abraça e aquece os meus olhos opacos de tão sós; meu coração palpita na garganta e me rouba a voz; meu espírito aprisionado no invólucro carnal se agita tanto que quase abandona o corpo que por isso treme; toda esta confusão me paralisa ao passo que já não caibo mais em mim. 
A moça passa por mim sem que eu consiga mover um dedo sequer, ainda que em meus interiores haja vulcões em erupção, tempestades, tornados, tremores de terra e maremotos; aquela musa expõe sua graça de tal forma que ao mesmo tempo em que se põe na praça se nega ao freguês pela sua magnitude como fosse peça da Arte-Divina, Obra-Prima de Deus.
Ela tem o sorriso preciso e infinito, na medida certa do que eu preciso.

(Danilo Kuhn)


quarta-feira, 18 de julho de 2012

Brava gente brasileira


Os braços que se vão regendo a lavoura empunham agora a enxada em vez da batuta. Música-da-terra é a sua nova labuta: sementes notadas na partitura. A clave-de-sol-forte lhe escalda a fronte, e o labor desde os clarins da alvorada lhe consome as idades. E enquanto a plantação é orquestrada, o passado renasce no horizonte: foi maestro de voz e de instrumento, compositor de silêncio e de som, mas sentiu a vida mudar de tom, lhe impondo a si, imigrante, um novo sustento. Alegre nunca foi sua música, por ânsia de vislumbrar um mundo melhor – febres-sonoras de amargo sabor em forma de valsas, polcas, chotes ou mazurcas –. Tampouco agora haveria de ser... Embora sua lavoura gere vida, jamais calarão as vozes feridas que ecoam em coro do âmago do ser.
Foi expulso de sua terra natal pelas mãos graves da fome e da guerra, e a cada golpe de enxada na terra relembra trincheiras de sangue e de sal. Nada é tão dissonante quanto a guerra, a obra polifônica infernal. Não há luta justa, livre de mal, quando vidas inocentes encerra...
O imigrante que provou do mundo os temores e as esperanças, com a sua música ainda criança já presenteava almas com garatujas-melódicas profundas. Mas mesmo com tanto e todo o talento, teve de deixar a sinfonia inacabada... Trocou a sua batuta pela enxada quando o malogro lançou a pauta ao vento... Mas ainda assim fazia música da terra germinar, pois maestro continuava a ser perante o universo.
E foram tantos os imigrantes que ao Brasil desbravaram e ergueram, abriram picada e fizeram indústria, plantaram sustento e sustentaram Estado. Alemães, italianos, e outros tantos, órfãos de terra, plenos de lavouro.
Braços fortes para a enxada. Cenho cerrado para o horizonte. Pulso firme. Sempre avante.
Imigrantes: brava gente brasileira.

(Danilo Kuhn)


segunda-feira, 9 de julho de 2012

Coração partido


Há noites em que a conjuntura do universo, a disposição dos astros e a influência lunar nos tornam mais suscetíveis. Numa dessas noites, Jacó sonhou. Sonhou e pelo sonho deixou-se transportar.
O sol matinal do inverno esquentava os campos, brandamente, e no carro com sua família Jacó teve uma ideia e dela riu-se. Seus familiares riram-se também, mas não se riam por deboche, Mas é mesmo, disse a madrasta, Tu já pensou, indagou animada a namorada, Tu te elege, palavra, afirmou exclamante o pai. A ideia precursora das risadas e dos comentários era a possível candidatura de Jacó a vereador na eleição do ano seguinte. Jacó é conhecido na cidade, um artista, rapaz educado e bem-apessoado e que, além disso, é muito estudioso, sente-se capaz de estudar o que for preciso para tornar-se um bom-político.
Embora sua ideia tenha lhe parecido primeiramente um tanto despropositada, ele aos poucos começou a interessar-se pela mesma. Viu nela a possibilidade de aperfeiçoar-se como ser humano, de poder ajudar as pessoas e a organizar e qualificar sua cidade. Buscou livros sobre política em geral, manuais sobre as atribuições de um vereador e de um bom-político, leis sobre a vereança, estratégias de campanha, guias de administração pública, mas também livros com maior amplitude intelectual, como os de filosofia, de retórica, de teoria do discurso, ciências políticas e sociais, e poesia. Para Jacó, um bom-político deve ser um grande homem, uma pessoa preparada intelectualmente para pensar, levar a cabo e administrar grandes ideias.
Assim, durante horas, dias, semanas, meses, Jacó concentrou seu pouco tempo livre para dedicar-se ao estudo e ao planejamento de sua candidatura. Elaborou discursos, efusivos, construiu argumentações para debates, sempre eloquentes, estruturou minuciosamente suas propostas. Por muitas vezes discordou de seu material de estudo, pois havia sugestões não muito éticas nos mesmos. Noutras tantas, alimentou seu sonho de tornar-se um bom-político e um grande homem, inspirando-se principalmente na filosofia e na arte. Enquanto artista, e, portanto, sonhador, imaginou ações e programas sociais capazes de aprofundar as pessoas, de torná-las mais sensíveis e críticas a partir da Boa-Arte. Vislumbrou organizar orquestra, coral, corpo de teatro e de dança municipais, todos estes com enfoque social e, é bom que se diga, com a devida preocupação com o seu financiamento: programas de incentivo à cultura e estratégias de captação de recursos apontados na ponta do lápis. Ademais, trazia na ponta da língua as várias frentes de campanha que criara não só para a cidade, mas também para o interior.
Porém, nem tudo são planejamento e estudo e boa-vontade, é preciso agir. Jacó, então, entorpecido pela sua empolgação, tratou de filiar-se a um partido político, o da situação na prefeitura da cidade, mas o fez sem a devida reflexão. Ele conhecia o prefeito, conhecia muitas pessoas daquele partido, embora nunca houvesse militado para este. Tratava-se de um partido grande, da situação há um bom tempo, organizado em seus interesses gerais e individuais, muitas pessoas envolvidas com a causa partidária, muitos militantes.
Eis o problema, caro leitor. Jacó sempre foi muito crítico, sempre fez questão de pensar com sua própria cabeça, coisa de artista. Num partido político, as pessoas costumam fechar os olhos aos erros de seus correligionários – embora percebam este contracenso –, defender as decisões partidárias com afinco – mesmo que isto contrarie seus ideais –, e favorecer colegas de partido com cargos ou candidaturas de acordo com sua contribuição e doação, muitas vezes estritamente em campanhas ou em eventos públicos e outras práticas eleitoreiras.
Nem é preciso terminar de contar a estória para concluirmos seu final. Jacó deparou-se com uma realidade não imaginada por ele. Pensou, desde a concepção da ideia, que sua possível candidatura seria avaliada e abalizada de acordo com os termos do merecimento. No entanto, pode observar e experimentar na pele que, numa organização partidária, vários outros critérios, menos éticos, são utilizados para as prévias eleitorais. Sequer teve oportunidade de apresentar suas ideias. Foi orientado a primeiro “fazer seu nome” no partido.
Não vejo, obviamente, apenas demérito num partido político. Partir a política é necessário, partindo do princípio que existem ideias, ideais, ideologias totalmente incompatíveis. O problema é sepultar a ética e a opinião própria em nome de uma lógica partidária contra sua própria ideologia ou ideais ou ideias. É preciso ter estômago para tal.
No caso de Jacó, seu partido é um coração partido. Um artista, com profundidade, não é raso o suficiente para a política.

(Danilo Kuhn)