terça-feira, 11 de setembro de 2012

É lá fora que eu me vingo do tempo



Tiro os óculos-escuros para ver as cores reais que dançam do outro lado do para-brisa do carro, os incontáveis tons de verde e marrom e bege entre pasto e árvores e coxilhas que quanto mais distantes mais pendem ao azul do céu e mais perto dele chegam, o azul do céu com suas nuvens brancas que mais parecem pinceladas sfumato de Da Vinci e véus de noiva em dégradé ao vento... A poeira da estrada-de-chão alaranjada empresta um efeito especial quando se antepõe à paisagem e lhe esmaece, vários sóis surgem cada um em um açude que se apresenta à visão iluminando ainda mais o dia e as cores, sinuosos riachos serpenteiam água pura e cristalina a verter do ventre da terra e sua mata-ciliar também serpenteia o campo a declarar sua presença e seu caminho...
Lá fora eu não uso relógio, apenas o sol com seus ponteiros de luz me orientam durante o dia e a lua com sua colcha de estrelas durante a noite. Se o dia ou a noite está nublada ou chuvosa, a relação de tempo é outra, bem mais lenta e flutuante... É lá fora que eu me vingo do tempo que me sufoca me impondo cada vez mais trabalho, ganância e responsabilidade... É lá fora que meus amigos cães me mostram o valor da amizade e da lealdade que não há nas relações humanas de forma assim tão inocente e sincera... É lá fora que um casal solitário de colhereiros cor-de-rosa-salmão num banhado me ensina sobre cumplicidade e fidelidade... É lá fora que as tartarugas da taipa do açude têm a tranquilidade de tomar banho-de-sol e as vacas e bezerros a confiança de se achegar às casas no final da tarde...
Lá fora, nem a mais venenosa das cobras tem a peçonha da inveja, nem a mais ardida das ortigas dói tanto quanto o desprezo, nem o mais fundo açude representa o perigo das esquinas, nem a mata mais fechada desorienta como o trânsito, nem a noite mais escura amedronta como a solidão das multidões...
É lá fora que eu me vingo do tempo. Lá, as horas não me alcançam, a ampulheta não me escorre, o relógio não me governa. Não sei como Cronos me enganou por tanto tempo...


(Danilo Kuhn)


Um comentário:

  1. Minha Crônica Afônica "É lá fora que eu me vingo do tempo" foi publicada hoje, 14 de setembro de 2012, no Jornal TRADIÇÃO REGIONAL, à página 23.

    Muito obrigado ao Jornal e seus responsáveis, e à Claudia Duarte pela força de sempre.

    http://blogdascronicasafonicas.blogspot.com.br/2012/09/e-la-fora-que-eu-me-vingo-do-tempo.html

    "É lá fora que eu me vingo do tempo. Lá, as horas não me alcançam, a ampulheta não me escorre, o relógio não me governa. Não sei como Cronos me enganou por tanto tempo..."

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