segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Joga fora


Quando tu tiveres caixas e mais caixas de dias difíceis guardados, em que cada hora parecia uma eternidade de angústia, em que o ar era pesado demais para se respirar, em que o cheiro de tristeza estava impregnado em cada foto, em cada página, respira fundo, acha coragem e joga fora.
Quando tu estiveres arrumando tuas gavetas da lembrança e encontrares documentos de maus negócios, anotações de planos que não deram certo, sonhos não realizados, sementes que não germinaram por causa dos maus ventos, fecha os olhos, sem temer, e joga fora.
Quando tu olhares as fotos encrustadas nas paredes da tua memória e perceberes que algumas esmaeceram, perderam as cores, tornaram-se retratos em sépia ou em preto-e-branco, e os rostos já não são os mesmos, já não dizem as mesmas coisas, já não representam o que já foram por conta do trabalho incessante do presente, desprega-as e joga fora.
Tudo o que vivemos nos transformou e continua nos transformando, isto independe de que guardemos ou não. E guardar com muito apego nos impede de assimilar, de transformar em nosso proveito.
Hoje, joguei tanta coisa fora... Mas nada disso, nem por isso, vou esquecer. Apenas joguei ao vento as energias, para que se renovem. Se remoemos o passado, andamos pra trás.
Arruma tuas coisas, revisita teus baús, tuas gavetas, as paredes da tua memória. E tudo que já não serve, joga fora. Faz bem.

(Danilo Kuhn)


domingo, 23 de dezembro de 2012

Férias de mim



Aqui, onde as horas não passam. Aqui, onde o tempo não me vê. Aqui, onde a rotina não me enxerga. Aqui, onde preocupações esvanecem. Aqui, onde os sonhos adormecem. Aqui, onde o passado não vem à tona. Aqui, onde as amarguras não me sorvem. Aqui, onde a inveja não alcança. Aqui, onde o trabalho não impera.
Vez em quando, tiro férias de mim. E fico aqui, distante, ouvindo o murmurar constante do riacho, degustando a brisa e seus aromas silvestres, mastigando o tempo, bebendo as horas.
A rotina mastiga, sem pressa, dia a dia, vida e viver. O mundo perde as estrelas da noite, o gorjear matinal, as matizes do crepúsculo, a dança das nuvens, as flores, a lua, a poesia.
É claro que assim como não existe noite sem dia, som sem silêncio, luz sem sombra, também não existe férias sem trabalho. Mas tudo há de ter seu tempo. Um ciclo.
Por isso, hoje tirei férias de mim. Não penso, não calculo, não faço planos. Tudo a seu tempo. E é tempo de férias. Dar-se férias de si mesmo é um ato de desprendimento momentâneo, necessário para renovar as energias, revigorar-se, reanimar-se, reviver-se.
Dá-te férias a ti mesmo, ainda que por apenas alguns dias. Certos distanciamentos nos aproximam. Boas férias!

(Danilo Kuhn)


segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Uma crônica para o fim do mundo


Antes que o mundo acabe, eu vou amar como se não mais pudesse. Como se não houvesse amanhã, como na verdade não há, ao menos nunca deveria haver. A medida de amar é amar sem medidas, sem poupações, sem ressalvas. Amar plenamente, como se fosse a primeira vez, como se fosse a última vez.
Antes que o mundo acabe, eu vou trabalhar incansavelmente, como se fosse a última oportunidade de atingir minhas metas. O trabalho dignifica o homem e eu quero terminar dignamente. O trabalho é o amor por aquilo que se faz tornado visível, palpável.
Porém, antes que o mundo acabe, eu também vou me dar horas de lazer, roubar algumas voltas dos ponteiros do tempo para meu usufruto sereno, usar da paz do mundo para pacificar meu espírito, e entender que nem só de trabalho se vive. Momentos roubados de Cronos são o nosso combustível para escapar dele. Um passeio de mãos dadas, um banho de mar purificante, uma sesta após o almoço à sombra de uma árvore, o vento no rosto.
Antes que o mundo acabe, eu vou lutar pelos meus sonhos, pelos meus ideais, como se somente hoje eu tenha poder de persuasão para convencer o mundo de que eu estou certo. Amanhã será tarde, muito tarde.
Antes que o mundo acabe, eu vou perdoar a quem me tem ofendido, magoado, ferido, assim como vou me perdoar por também ofender, magoar, ferir. O perdão começa em perdoar a si mesmo.
Antes que o mundo acabe, eu vou ser um bom equilibrista para equilibrar corpo e mente, trabalho e descanso, ilusão e brilho no olhar, esperança e atitude. Devemos colocar tudo na balança, e usar de seus pesos-padrão para equilibrar as coisas.
O mundo sempre acaba amanhã. Amanhã sempre é tarde. Viver o hoje sempre potencializa-nos. Amar hoje, trabalhar hoje, descansar hoje, lutar hoje, sonhar hoje, perdoar hoje, equilibrar-se hoje, viver hoje.
O amanhã não há. Só o hoje vive. Vive hoje, e sê feliz.

(Danilo Kuhn)


segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

"Ao Mestre, com carinho"!


Quando ainda no ventre da nossa mãe, donde talvez possamos ter as primeiras lembranças ou sensações, experimentamos e desfrutamos do carinho e do amor dos nossos pais ao acariciar-nos imersos no líquido uterino, recolhidos ao imenso barrigão, onde aprendemos as primeiras lições de afeto.
Quando nascemos, dão-nos umas palmadinhas no bumbum, ensinando-nos, ao primeiro choro, a respirar sem fazer uso do cordão-umbilical, bem como recorremos ao seio materno, quando a ele entregues, para alimentarmo-nos tendo já tolhido o laço à altura do umbigo.
Depois, aos poucos, os pais ensinam-nos a mastigar, a gatinhar, os primeiros passos, as primeiras palavras, contar até dez, a bicicleta-de-rodinha, enfim, uma infinidade de aprendizados nos é passada de pais para filhos, os quais nos preparam para seguir adiante.
Em seguida, vem a escola, propriamente dita, onde vamos aprender a ler, a escrever, a desenhar, a pintar, a estudar, a pensar, a conviver com as diferenças, a sofrer com elas também, mas tudo é aprendizado. Professores se revezam em importância para nós, a alguns guardamos com carinho, a outros lhes esquecemos ou por vontade própria ou por terem passado por nós sem deixar marcas. Colegas também são importantes nesta relação de ensino-aprendizagem, nos dão o bom exemplo do estudioso ou do aplicado, nos dão o mau exemplo do bagunceiro ou do brigão ou do desinteressado. Amigos também tomam parte importante de nossa formação haja vista que nem todos os colegas são amigos, e nem todos os amigos são colegas, e não passamos o dia inteiro na escola, também temos a nossa rua ou bairro ou prédio ou condomínio. Tem também os parentes, primos e irmãos, acabam nos sendo amigos, ou somente colegas de família.
Também temos os nossos professores do amor, do amor de homem e mulher, ou de menino e menina, que geralmente os temos desde a infância e de diversas formas. Os namoricos de criança, que por mais inocentes que sejam, nos ensinam. Os amores platônicos de adolescente, nunca correspondidos, sempre inspiradores. O primeiro beijo. A primeira vez. Ninguém nasce sabendo. A tudo se aprende. De tudo nos ensinam.
Em verdade, é vivendo que se aprende, com a vida, esta vitalícia professora incansável, que nos aprova e reprova sem restrições, que aplica provas-surpresa, que tem seus próprios métodos de avaliação, que não se restringe a uma única tendência pedagógica, que nos pede a mão à palmatória, que nos escreve à lousa com seu giz de sangue e suor, que nos cobra o conteúdo e nos aconselha, que nos castiga e nos dá amor sem reprimendas, que nos conhece e nos faz conhecer-nos. Nossa formatura é ao longo do processo, e quando ficamos realmente prontos para os seus propósitos, concluímos a escola da vida, ou talvez somente mais uma etapa do ensino de Deus, levando conosco sabe-se lá para onde nossos cadernos de anotações, toga e diploma, deixando de herança apenas novos alunos, filhos nossos, para frequentarem a mesma escola, as mesmas salas de aula. Resta-nos agradecer: “Ao Mestre, com carinho”!

(Danilo Kuhn)


segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

"Fechar os olhos"


Quando alguém passa por mim na rua e me pergunta as horas, e eu educadamente e sorridente respondo, e este alguém apenas segue seu caminho sombrio por entre os seus escuros, sem agradecer com palavra ou gesto ou expressão, eu fecho os olhos para ver a luz.
Quando alguém que me conhece me vira a cara na rua, em notória embriaguez de desdém, após alguns segundos sem chão eu fecho os olhos para retomar o caminho.
Quando alguém se diz meu amigo e me apunhala pelas costas com suas mentiras e palavras envenenadas, com seu jogo moribundo de sorrisos de plástico e abraços ocos, eu fecho os olhos para cicatrizar as feridas.
Quando alguém me serve o cálice do ódio, desejoso de compartilhá-lo, de afetar-me com seu vício, de embriagar-me de cólera para cair em sua armadilha, eu fecho os olhos para manter a sobriedade.
Quando a inveja alheia bate à porta, intentando adentrar a casa sem pedir licença e levar consigo tudo de bom que há lá dentro, a roubar-me meu trabalho e meus sonhos, eu fecho os olhos para não abrir a porta.
Quando o ciúme ameaça me consumir por dentro, acenando possibilidades improváveis, remoendo o passado acrescentando-lhe pitadas de suposições nocivas e de imagens daninhas, eu fecho os olhos para olhar o presente.
Fecho os olhos porque já os abri o suficiente para enxergar o que eu não queria ver, o que eu preferiria não saber. Fecho os olhos porque já perdi a ilusão de um mundo feito apenas de amor, amizade, companheirismo, cooperação, união, educação e outros sentimentos e atitudes boas. Porém, fecho os olhos também para manter o brilho no olhar, o pouco de encantamento que ainda me resta.
Como é bom encontrar uma pessoa extremamente agradável, ou educadíssima, ou muito culta, ou que esbanje simpatia sem ter segundas ou terceiras intenções. Mas a pequenez humana é maioria. E, como vivemos em uma democracia...

(Danilo Kuhn)