segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Amanhã, quando eu morrer



Amanhã, quando eu morrer, vou enganar o mundo num aceno vago, despedida falsa.
Quando eu te disse “eu te amo”, nestas palavras te entreguei meu coração.
Quando eu te pedi “por favor”, neste momento te alcancei minha esperança.
Quando eu te disse “obrigado”, ali te dei minha gratidão.
Quando eu te roguei “vem comigo”, contigo reparti meu medo.
Quando eu te convidei “fica comigo”, contigo dividi minha solidão.
Quando eu te disse “meu amigo”, trocamos lealdade e amizade.
Eu não vou partir, pois já me reparti com vocês, assim como não vou sozinho, vou com todos vocês.
Amanhã, quando eu morrer, vou continuar vivendo em vocês, e vocês vão morrer um pouco em mim.

(Danilo Kuhn)


segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Por entre as flores



Por entre as rosas veio o vento a falar de amor, seu perfume e seus espinhos. Do rubor que seduz ao passo que cega, do aroma que cativa porque embriaga, dos espinhos que instigam, pois privam.
Por entre os lírios veio o vento a falar de Deus, suas dádivas e sua espada-de-fogo. Da fé que move montanhas porque acredita, da esperança que é a última que morre, pois espera.
Por entre as árvores-em-flor veio o vento a falar da vida, seus sabores e dissabores. Das raízes que garantem sustento orgânico e moral, da semente donde a vida rebrota, dos frutos que se colhe e os que caem de maduro.
Por entre os crisântemos veio o vento a falar de morte, seu ponto final, nova linha e travessão. Da ausência do ente-querido na cadeira vazia, no catre frio, da presença daquele na ausência que se nega a ausentar-se.
Por entre as flores fala a poesia num sopro quase inefável. Por entre as flores brilha a luz dos olhos dos apaixonados. Por entre as flores conversam a mãe gestante e o filho que gesta. Por entre as flores o silêncio canta uma canção. Por entre as flores estrelas beijam gotas de orvalho.
De que adiantaria a primavera, se não se pudesse estar por entre as flores?


(Danilo Kuhn)



domingo, 14 de outubro de 2012

Quando o giz acaricia a lousa


Quando o giz acaricia a lousa, sussurrando palavras brancas, olhinhos brilham tanto de curiosidade que seria um pecado chamar-lhes a-lunos, sem-luz.
Quando o giz acaricia a lousa, piso ou teto salarial tornam-se piso e teto da sala de aula que o professor transforma em reino de riquezas impalpáveis.
Quando o giz acaricia a lousa, cada descoberta é uma janela que se descortina, uma porta que se abre, e um abraço que acolhe.
Quando o giz acaricia a lousa, o silêncio se transforma em palavra, a penumbra se ilumina, a verdade ganha força, caem as mordaças, desatam-se as vendas, desvelam-se os véus.
Quando o giz acaricia a lousa, benévolas iscas fisgam o interesse da classe com seus anzóis de luz.
Misto de pai e mãe, professores dão asas mas advertem dos maus ventos, dão o peixe mas ensinam a pescar, estendem a mão mas encorajam a andar-se por si só, abraçam para confortar mas aconselham, ofertam a luz do conhecimento mas incentivam ao brilho próprio. O professor contempla a magia do ensinar, e com isto também aprende, quando o giz acaricia a lousa.

(Danilo Kuhn)


segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Coisa de criança


Quando eu era criança, pensava que quando trovejava era porque o Papai-do-céu estava brabo, talvez por alguma travessura minha... Meu pai me dizia que não era por isso, que na verdade era um fenômeno físico, ou alguma coisa assim. Mas eu preferia pensar que o Papai-do-céu estava brabo comigo, e eu ficava horas pensando, tentando descobrir o que tinha feito de errado, pra poder pedir perdão e parar de trovejar...
Quando eu era criança, gostava de pular as sombras das árvores no asfalto quando eu saia de carro com meu pai. Iam as rodas da frente primeiro, pulavam, e depois, quando essas tocavam no chão, as detrás é que pulavam, fugindo das sombras, pulando de luz em luz. Passava a viagem inteira fugindo das sombras, buscando a luz, sem contar nada pra ninguém...
Quando eu era criança, gostava de mirar com os olhos nos bandos de passarinhos que voavam da beira da estrada quando o carro passava. Mirava e atirava em um por um, não errava um tiro. Eles não caíam, não morriam... Era só de brincadeira. E apenas eu sabia como atirava bem com meus olhos...
Quando eu era criança, pensava que o mundo era em preto-e-branco antes de ser colorido, assim como as fotografias e os filmes antigos. E era lindo ver os vários tons e matizes cinzas, a profundidade das sombras e das paisagens. Certo dia, Papai-do-céu teve a divertida ideia de colorir as coisas. Deve ter começado com o pôr-do-sol e depois com o amanhecer; depois derramou verde sobre os campos e azul sobre as águas e o céu. Então, aos poucos, foi colorindo as frutas, as flores, os animais, as gentes... Só depois coloriu as fotos e a televisão...
Mas isso tudo é coisa de criança. Em verdade, não há encanto algum numa tempestade nem ninguém nos vigiando do cimo das nuvens, não é possível desviar das sombras do caminho e caminhar somente pela luz, nossos olhos não têm poder, e as coisas sempre foram coloridas como hoje são.
Espere... Você não está escutando? Eu estou escutando uma voz, de criança, que vem de dentro de mim, e ela me diz, Não, você está errado, não perca o encanto da vida, não deixe de buscar sempre a luz, não deixe de olhar as coisas com os olhos da alma, nem aos pássaros, nem às pessoas, nem às cores.
Existe uma criança dentro de cada um de nós. Não deixe que a aspereza e sujeira do mundo a macule e a sufoque. Ver o mundo com encanto, fantasia, esperança e amor, isto é coisa de criança.

(Danilo Kuhn)



terça-feira, 2 de outubro de 2012

Quando chove lá fora


Um trovão ressoa longe, com sua voz grave, num prenúncio de aguaceiro. Parece que o campo inteiro se aquieta, à espera. A brisa que soprava leve paralisa e o ar se amorna. As folhas das árvores param de dançar. As águas dos riachos correm mais lentas, caminham. O gado pasta calmamente, disfarçando que sabe do tempo. Em verdade, o campo sabe que não há como escapar e apenas se prepara. E nem quer escapar: o campo sempre está com sede, bebe da chuva.
Um raio se desprende do meio da tempestade, riscando o céu à ponta-de-espora e tinindo as cordas do alambrado ao pontear seu violão. O horizonte se emburra e a tarde mormacenta vai ganhando noite. O temporal chega à revelia de palma-benta ou cruz-de-sal. A oração do campo à espera da chuva é mais forte que as das casas onde se cobre o espelho da sala. A tormenta atormenta as casas, não o campo. A brisa, de paralisada, ganha asas e se torna vento forte. O ar amornado se agita e se refresca aos primeiros pingos. As folhas vibram de alegria e se banham, mandam a poeira embora. As águas dos riachos tomam corpo e volúpia. Os animais se abrigam do perigo, mas contemplam a bênção. O campo é uma prece, pela dádiva da água da chuva agradece. A aparente violência da natureza é entendida como pressa pelo campo. A água da chuva encharca a terra, alaga o campo, arrebenta taipas, transborda rios e abre outros nas coxilhas, estoura bueiros, leva por diante estradas, pontes, plantações, mas a água da chuva mata a sede do campo e da mata, verdeja pasto e folha, rega flor e erva, afresca fruto e broto, sacia fauna e flora, abastece açude e rio e entranhas da terra de onde a água rebrota nas cacimbas e verte nas vertentes. A água irriga sementes, germina a terra, louva a lavoura, garante o sustento, sustenta casa e galpão.
Quando chove lá fora, o campo se banha nos banhados, viaja pelos rios, bebe das sangas e açudes, goteja nas folhas das árvores, floresce nos jardins, amadurece nos frutos, se refresca na brisa, brinca de esconde-esconde pelas vertentes debaixo da terra... O campo lava a alma, quando chove lá fora.

(Danilo Kuhn)