terça-feira, 25 de setembro de 2012

Vamos construir?



E foi Dona Aranha a tecer na linha das horas sua obra-de-arte em forma de trama e armadilha. Que caçador é capaz de caçar assim com tamanha beleza? A presa com pressa, sem olhos pra arte, ficou presa. O bicho-homem na obra interviu. Por ânsia de destruir, destruiu.
E foi Dona Formiga a construir seu armazém de areia de corredores, depósito e escritório. Abriu picadas e assentou estradas, juntou estoque pra enfrentar o período de entre-safra, agregou trabalho, não mediu esforços, trabalhou em cooperativa. Que associação é capaz de funcionar assim com tanta eficácia? O bicho-homem na empresa interviu. Por ânsia de destruir, destruiu.
E foi Dona Abelha de flor-em-flor a buscar matéria-prima pra fabricar seu produto. Vasculhou todos os jardins, vistoriou todas as árvores-em-flor. Cada operária numa direção, todas de volta pra mesma colmeia, pro mesmo reino. Em seu Gabinete Real, a Rainha saboreia o seu reinado que governa com autoridade e austeridade, isto lhe apraz. Que Estado governa assim com tal competência? O bicho-homem no reino interviu. Por ânsia de destruir, destruiu.
Vamos construir? Deixar de ver no outro um rival, de pensar a vida como uma competição, de achar na felicidade e no talento alheio motivo pra inveja, de destruir toda e qualquer possibilidade de união, de cooperação, de entendimento, de trabalho em grupo... Destruímos laços familiares, amizades e coleguismo, relações de afeto, patrimônio público, teias-de-aranha e obras-de-arte, formigueiros e ambientes de trabalho, colmeias e governo...
Sigamos o exemplo da natureza, bicho-homem... Vamos construir?


(Danilo Kuhn)


terça-feira, 18 de setembro de 2012

Mateando solito



Sorvo os primeiros raios de sol do amanhecer enquanto a pampa desperta despacito, como quem mateia solito. O amargo do mate me traz recuerdos de esbarradas e boléus que o potro xucro do destino me deu pelos rodeios da vida... E foi cada rodada, de levantar polvadeira...
Na gineteada do amor, tentei de toda sorte não ir ao chão, mas a cada galope, cada paixão, o tombo da saudade insistiu em me quedar do lombo... Me aconcheguei com a solidão, que em mim se aquerenciou, que só a água do mate me aquece o coração...
Na gineteada da vida, por ser redomão, nunca aceitei cabresto de patrão, e apesar da guaiaca na rapa, mais me valem hoje honra e orgulho em ordem do que meia-dúzia de cobres... Nunca me faltou coragem pra peleia, por mais que a parelha fosse feia. Nunca levei desaforo pra casa, por mais que a adaga da vida me desse pranchaço e talho...
Na gineteada da morte, china maleva que no horizonte me espera, dou boca ao potro-destino sem sofrenar, solto as rédeas e me vou de peito aberto pra onde eu deva ir... Já vivi muitas primaveras e sei que o Patrão Velho lá de cima sabe o meu tempo e minha hora...
Mas ao matear solito não me sinto assim tão só. Tenho o cusco debaixo do banco, enrodilhado, parceiro de lida e rancho, que vez em quando abre um dos olhos pra me espiar... Tenho o mate que me aquenta e me aviva a memória, rememorando histórias minhas que apesar de amargas vou sorvendo aos poucos... Tenho o rancho que eu mesmo ergui com meu suor e trabalho e que me abriga nas invernias com pelego e fogo e nos temporais com palma-benta e cruz-de-sal... Tenho a bicharada em volta que vive no seu mundo, mas me empresta companhia no meu... Mais adiante tenho o galpão onde as lembranças de fogo-de-chão e cantoria de cordeona e violão ainda povoam as paredes de madeira empoeirada... Meu gateado me espreita do potreiro e por certo mateia comigo...
O sol já sorveu toda noite e toda névoa que cobria as coxilhas, e agora aquenta como a água do mate. É hora de acordar pra o dia e deixar minhas noites na erva lavada. Ainda tenho lida pela frente. O meu peito agora quente já sorveu seus amargos e começa a sentir o doce aroma da manhã de mais uma primavera. É hora de encilhar e de seguir, venta-aberta, pela pampa já desperta. É hora de sobrar cavalo. Sou gaúcho e não me achico pra esse tal potro-destino.


(Danilo Kuhn)


terça-feira, 11 de setembro de 2012

É lá fora que eu me vingo do tempo



Tiro os óculos-escuros para ver as cores reais que dançam do outro lado do para-brisa do carro, os incontáveis tons de verde e marrom e bege entre pasto e árvores e coxilhas que quanto mais distantes mais pendem ao azul do céu e mais perto dele chegam, o azul do céu com suas nuvens brancas que mais parecem pinceladas sfumato de Da Vinci e véus de noiva em dégradé ao vento... A poeira da estrada-de-chão alaranjada empresta um efeito especial quando se antepõe à paisagem e lhe esmaece, vários sóis surgem cada um em um açude que se apresenta à visão iluminando ainda mais o dia e as cores, sinuosos riachos serpenteiam água pura e cristalina a verter do ventre da terra e sua mata-ciliar também serpenteia o campo a declarar sua presença e seu caminho...
Lá fora eu não uso relógio, apenas o sol com seus ponteiros de luz me orientam durante o dia e a lua com sua colcha de estrelas durante a noite. Se o dia ou a noite está nublada ou chuvosa, a relação de tempo é outra, bem mais lenta e flutuante... É lá fora que eu me vingo do tempo que me sufoca me impondo cada vez mais trabalho, ganância e responsabilidade... É lá fora que meus amigos cães me mostram o valor da amizade e da lealdade que não há nas relações humanas de forma assim tão inocente e sincera... É lá fora que um casal solitário de colhereiros cor-de-rosa-salmão num banhado me ensina sobre cumplicidade e fidelidade... É lá fora que as tartarugas da taipa do açude têm a tranquilidade de tomar banho-de-sol e as vacas e bezerros a confiança de se achegar às casas no final da tarde...
Lá fora, nem a mais venenosa das cobras tem a peçonha da inveja, nem a mais ardida das ortigas dói tanto quanto o desprezo, nem o mais fundo açude representa o perigo das esquinas, nem a mata mais fechada desorienta como o trânsito, nem a noite mais escura amedronta como a solidão das multidões...
É lá fora que eu me vingo do tempo. Lá, as horas não me alcançam, a ampulheta não me escorre, o relógio não me governa. Não sei como Cronos me enganou por tanto tempo...


(Danilo Kuhn)


segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Selva de pedra



Mas que floresta estranha é essa? Eu vejo luzes, cores e flores artificias... Sorrisos de plástico brotam feito erva-daninha e demoram uma eternidade para se decomporem, não são biodegradáveis. Aqui o tempo passa tão depressa que sufoca, devora, e a manada já não sabe aonde vai por não ter pr’onde ir. Por instinto, são todos iguais, aonde um vai, vão todos, ainda que seja p’ra lugar algum.
Tem relva e árvores de concreto, jardins de aço, veredas de asfalto, e a brisa cheira à óleo diesel, pneu queimado e gasolina. Há rios de esgoto à céu aberto onde peixes de garrafa-pet e de papelão mergulham em água turva. No horizonte acinzentado, são nuvens de fumaça a neblina que se ergue e que rarefaz o ar.
Nessa floresta habita o homem coração-de-pedra, em seu habitat artificial, a contar vil metal. Como quem ateia fogo em sua própria casa, ele destrói a si e a tudo em volta, queimando o ar, turvando o céu, nublando a água, ferindo sentimentos e cortando laços. Volta-se contra sua natureza ao desmatar a vida e superaquecer ganância, ao cultivar rosas-de-hiroshima e plantar a guerra e a morte de irmãos. Um autogenocídio, assassinatos em série de si mesmo, suicídios em massa.
E a floresta de pedra não para de crescer... Estende suas raízes por quilômetros, que aqui e ali emergem da terra para se alastrar aos brotes, ramos, troncos, galhos de concreto e metal. Suas sementes viajam milhas e milhas com os ventos quentes e malcheirosos, semeando cinzas e consumindo verdes.
A selva de pedra tem pressa, atropela. Ela te quer, quer teus filhos, teus netos, teus cachorros, gatos e toda e qualquer criação ou plantação, animais silvestres, quer pomares, hortas, pastagens, sítios, chácaras, fazendas, estâncias, léguas de terra, sesmarias, mata virgem e floresta tropical. Ela tem fome de campo e de verde, sede de água pura e cristalina, poças, poços, sangas, açudes, valos, marachas, riachos, arroios, rios, lagoas, mares. Ela não se sacia nunca. Ela vai te engolir. E não há gruta que te proteja, não há mata que te refugie, não há buraco que te esconda.
A selva de pedra está chegando, ela vai te encontrar, vai te seduzir e depois te trucidar. O fim está próximo, e não há salvação, pois ninguém pode te salvar de ti mesmo, ninguém. De que adianta orares a Deus por mudança enquanto tu fechas os olhos aos teus erros, vaidades e mediocridades? A selva de pedra está chegando. E ela vai te petrificar. E serás apenas mais um entre todos coração-de-pedra.

(Danilo Kuhn)