segunda-feira, 30 de abril de 2012

Mais uma de amor


Suave o toque luzidio das minhas mãos a desnudar tuas planícies, assim como o dia desposa a noite... Me olho nos açudes do teu olhar profundo e cristalino a refletir o sol; percorro a geografia das tuas colinas como a brisa mansa do amanhecer; meus dedos fazem teus cabelos dançar levemente, como o vento a brincar com as árvores na mata e seus pássaros a anunciar a aurora deste amor; exploro vales, veredas, canhadas, cada relevo...
Roubo o mel dos teus beijos como uma pequena abelha em teus jardins que exalam o aroma da paixão; te sussurro juras ao pé do ouvido feito o murmurar de um riacho; degusto os frutos do teu pomar; me afogo em teus afagos...
Já é dia, e a imensidão do amor excede o alcance da visão. Tão vastos campo e céu que o romance amanhece o dia a perder-se de vista... Lá no horizonte, já não se define o que é um ou outro: chegando-se lá, nada mais há do que outro horizonte distante... O amor é incomensurável, e infinito.
O amor é a paisagem que se vê da janela, onde, ao olhar do coração, os amantes, terra e céu, são uma só coisa. Dois amantes são um só ser, um dentro do outro. Dois amantes são o amor. Mesmo num amor não correspondido, dentro do coração do amador vive a pessoa amada. Mesmo para quem fecha as cortinas, o amor amanhece lá fora. O amor é o dia amanhecendo: não há como evitar.
Em nossas vidas, existem amanheceres, dias de sol à pino, verões escaldantes de quarenta graus, entardeceres, anoiteceres, eclipses, meses de escuridão, invernos rigorosos, até vida sem sol. E assim como o clima é contingente, o amor também o é... Nunca se sabe o que o amor nos reserva... A meteorologia do amor é impossível. Não há satélites. Não há previsão.
Nos resta viver. Nos resta amar. E estarmos preparados para as quatro estações.

(Danilo Kuhn)

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Para nossa alegria


Nos galhos secos desta crônica, para nossa alegria, florescerão apenas coisas boas. Não florescerão nosso extrato da conta corrente ‘no vermelho’, nem nosso salário achatado. Tampouco florescerão o financiamento do carro, o rancho do mês, as contas de água e de luz, ou a “fratura” do cartão de crédito. Não florescerão os problemas cotidianos, as preocupações com a filha ou filho ‘aborrescente’, a pressão dos pais por estudo ou trabalho, as dúvidas sobre sexo, ou as perguntas inoportunas dos avós. Não florescerão, também, as dificuldades nos relacionamentos, a falta de tempo para namorar, as discussões de relação, os desentendimentos com os parentes. Não florescerão, ainda, o engarrafamento e a poluição, o atraso para o trabalho, o chefe impertinente, as notícias de acidentes no trânsito, casos de pedofilia, estupros, assaltos, assassinatos, reportagens sensacionalistas. Bem como não florescerão dízimos, lavagem cerebral, vendas e mordaças, algemas e grades. E não florescerão o aquecimento global, a crise financeira, a política e a violência. Não florescerão ervas daninhas. Florescerão apenas flores.
Florescerão amanheceres nas colinas verdes encobertas pelo véu da bruma leve e pôr de sóis róseos e lilases refletidos no dorso branco das nuvens calmas aos quais não damos atenção. Florescerão um teto bordado de infinitas estrelas faceiras e um sopro de brisa fresca que nos acenam e não notamos. Florescerão a poesia da vida que nossos olhos evitam ler, as palavras doces que nossos ouvidos amargurados não sentem o sabor, o calor fraterno dos abraços dos quais fugimos mesmo estando com frio, o perfume de um amor a desabrochar que não alcança nosso olfato.
Enquanto a vida floresce no nosso jardim, tendemos a descuidar das flores. Não às regamos. Não às adubamos. Não percebemos suas cores, seu viço, seu lume, sua música, seu aroma, seu frescor, seu florescer. Não somos bons jardineiros. Podamos as flores e deixamos crescer as ervas daninhas.
Olhemos mais para nosso jardim interior. Nossa vida atribulada pouco nos permite, mas o simples tentar perceber nos enobrece. Se nos determos apenas com o ‘lá fora’, quem vai cuidar das flores?

(Danilo Kuhn)


segunda-feira, 16 de abril de 2012

Protesto contra a morte


Todo artista, de certa forma, é rival de Deus. Deus é o Criador, e o homem, a criatura. Porém, enquanto artista, o homem rivaliza com Ele ao ousar também criar.
Existem muitos artistas, e muitas artes. Existem os artistas da palavra, que se autoproclamam agentes da Divina Providência e rabiscam os destinos de suas criaturas, ou até mesmo dão vazão a mundos e formas de vida estranhas à Criação. Existem os artistas do som, empenhados em inventar maneiras musicais de traduzir sua alma e o mundo. Existem os artistas da tinta, que regem arrebóis e vislumbram paisagens não criadas por Ele. Existem os artistas artesãos, que inventam e fabricam instrumentos musicais, cores para a palheta, tecnologia para a fotografia e o cinema, material e ferramentas para a escultura, movimentos para a dança... E também existem os artistas da vida, que criam e recriam maneiras de amar, de pedir um favor, de mentir, de perdoar, de invejar, de roubar, de levar a vida, de viver, de matar, de ressuscitar... Todos nós somos artistas. Todos nós somos rivais de Deus.
O homem vive tentando superar Deus: controlar a natureza, explorar o universo, curar doenças, ter o controle sobre o seu destino e o dos demais, vida in vitro, clonagem, filhos sem pai nem mãe. Criatura x Criador.
No entanto, Deus tem a Sua garantia: a morte. A morte é a garantia que Deus tem sobre nós, mortais, de que nunca o superaremos. Por mais genial que seja o artista, mais cedo ou mais tarde ele perecerá.
A única maneira que o artista tem de protestar contra a morte é a sua obra. Somente ela será capaz de prolongar sua vida e, talvez, de imortalizá-lo. Sua obra pode ser uma ideia, uma lâmpada, uma obra de arte, sua própria vida, a vida do seu filho, um gesto, uma decisão. Por vezes, a obra omite o nome do artista, mas influencia gerações. Um beijo pode mudar o rumo de uma nação. Uma palavra pode salvar vidas e seus futuros filhos, netos, bisnetos... A única maneira que temos de protestar contra a morte é viver, e viver de maneira a prolongar nossa vida por meio da perenidade da nossa obra.
Por isso, eu protesto contra a morte! E convido-te a protestar também! E nossas vidas serão nossa obra a perdurar nossa existência...

(Danilo Kuhn)


terça-feira, 10 de abril de 2012

O tempo é o pior ladrão


Existe um lugar no universo onde vive tudo o que deixaste de viver. Lá está, aprisionado, tudo o que o tempo te roubou. Um passeio que não passeaste por conta de uma manhã enclausurada de estudos na primavera, com a paz de canto de pássaros e de brisa fresca e morna com aroma de flores e sol ameno a te esperar; um mergulho que não mergulhaste num açude refrescante à revelia de uma tarde mormacenta a poucos quilômetros da tua selva de pedra; uma palavra de carinho que não falaste, enredado ao teu cotidiano sufocante; um amor que não encontraste, naquela quarta-feira de serão no trabalho até às onze da noite em lugar de um happy hour à convite dos amigos; até uma árvore que não plantaste e sua sombra, seus pássaros e ar puro... Tudo está lá, na casa do tempo, roubado de ti.
O tempo é o pior ladrão. Te oferece pequenas vantagens em troca da tua própria vida, da vida em plenitude. Te rouba o bolinho de chuva, o aroma do vinho, o céu estrelado, os matizes do arrebol, o degustar dos condimentos, segundos de reflexão, minutos de silêncio, horas de sono, dias de alegria, semanas de férias, meses de viagem, anos de vida à dois, amores, filhos, netos, parentes, amigos, animais de estimação...
Sob a guarda do tempo jazem sonhos não realizados, poemas não escritos, rostos jamais vistos, palavras jamais ouvidas ou faladas, sorrisos não sorridos, beijos não beijados, abraços inócuos, ideias não pensadas...
Mas a vida e o mundo requerem trabalho, e o trabalho dignifica o homem. O trabalho, não o dinheiro. A vida e o mundo precisam de alimento, de cuidados, de agasalho, de abrigo, de arte, da luz do conhecimento, do descanso. E o agradecimento da vida e do mundo para com o teu trabalho te dignificam. O dinheiro é apenas a materialização deste agradecimento, para que tu materializes teu agradecimento aos teus prestadores de serviço: uma troca, simplesmente. O problema é a inversão de valores; colocar o dinheiro na frente do trabalho deturpa teu serviço, torna-o maculado. E esta é a principal armadilha do tempo: o “tempo-é-dinheiro”. Tempo não é dinheiro, tempo é vida. Vida tem trabalho, sim, mas também tem outras coisas.
Não apenas ‘gasta’ teu tempo, ‘passa’ ele também. Tem muita diferença entre gastar e passar o tempo. Gastando o tempo com ganância e ambição desmedida, pensando que cada minuto que passa é um minuto perdido, tu não o recuperas mais; o tempo te rouba os momentos mais belos da vida. Passando o tempo num passeio de mãos dadas à beira da praia, ou brincando de criança com teu filho, tu vives em plenitude.
O tempo é o pior ladrão, mas tu podes guardar à sete chaves, no teu coração, a beleza dos momentos preciosos.

(Danilo Kuhn)


segunda-feira, 2 de abril de 2012

Briga de torcidas


A Luiza e o André se conheceram há pouco tempo, paixão dessas que não se resiste nem se reflete: se mergulha. Atração fatal, lance de energia, química do amor. Namoro novo que se reconhece de longe: não se desgrudam nunca, beijos e carinhos em público, são só sorrisos. Parecem dois adolescentes, apesar dos vinte e tantos. O amor nos rejuvenesce...
O novo casal realmente tem muita coisa em comum. A Luiza é estudante de Arquitetura, o André faz faculdade de Engenharia Civil. A Luiza gosta de comida italiana, o André adora pizza e macarronada. A Luiza curte caminhar pelos parques da cidade, o André preza muito o contato com a natureza. A Luiza ama as crônicas da Martha Medeiros, o André acha o Veríssimo um cara muito inteligente. A Luiza é fã da Legião Urbana, o André toca Pais e filhos e Eduardo e Mônica no violão. E as semelhanças entre os dois enamorados por aí vão, interligando cada vez mais o casal a cada descoberta de gosto em comum.
Mas nem só as semelhanças são benéficas ao amor. A Luiza gosta de vinho suave, o André de vinho seco. Quando foram jantar juntos pela primeira vez, o André decidiu pedir vinho suave para agradar a moça. O amor também é feito de trocas, de renúncia... A Luiza também já cedeu: quando o André queria ir ao show do Pouca Vogal, ela o acompanhou e deixou de ir à festa de aniversário da melhor amiga. Todos têm que ceder. Ao menos um pouquinho.
Só que neste fim de semana teve clássico Grenal, e a Luiza é gremista e o André colorado. Ambos fanáticos. Daí não teve jeito, nenhum dos dois deu o braço a torcer. Permaneceram ela gremista, ele colorado. Foi o primeiro Grenal do casal, e foi tudo bem. Cada um vibrou com seu time, torceu, secou, gritou gol, cada um na sua, e o jogo acabou um a um. Depois do jogo, abraços, discussão construtiva sobre o jogo, jantarzinho íntimo e... Um a um no amor.
Se não houvesse respeito entre o casal, talvez ficassem no zero a zero. Eles souberam aprender a respeitar um ao outro, um ao time do outro. Nenhum deles diminuiu sua paixão pelo seu time do coração, e nem comprometeu a sua paixão um pelo outro. Noutros tempos, a Luiza xingaria os colorados. O André então, nem se fala. Já foi a clássicos e arranjou briga. Mas hoje em dia entendem que sua paixão não anula a do outro. Cada um de nós tem suas preferências, e preferir um clube de futebol a outro não nos torna melhores ou piores que ninguém. Parece um tanto óbvio, mas tem muita gente que confunde amor ao seu time com ódio ao rival.
Obviamente há a flauta, aquela brincadeira, a provocação ao torcedor adversário, muitas vezes sadia. A rivalidade ajuda aos clubes a se esforçarem sempre ao máximo para superar o rival. Mas quando isso descamba para a agressividade, para a violência, tudo muda de figura.
Nos estádios, nos bares e nas ruas, além de famílias, além de pessoas de bem, sempre há aquelas pessoas prontas para a briga, com a intenção da bagunça, com o espírito da baderna. Mais parecem romanos ao Coliseu. A verdadeira razão de estarem ali é a violência, é a anarquia, e não a paixão futebolística. O futebol é apenas o bode-expiatório.
O André e a Luiza já combinaram: de vez em quando, um vai acompanhar o outro nos jogos do Grêmio, e do Inter. Não vão chegar ao ponto de vestir a camisa do rival, vão à paisana. Mas que mal há nisso? Em acompanhar o grande amor no jogo do seu time?
Briga de torcidas não combina com o amor. Nem com o amor homem/mulher nem com o amor ao próximo. Tu escolhes teus amigos pela cor da camisa? Tu eleges teus relacionamentos de acordo com o clube do coração? Só compras roupas da cor do teu time? Não aceitarias um bom negócio porque o carro é da cor do rival? Convenhamos. Não sejamos tão pequenos.
No jogo da vida, ou no do amor, não há espaço para briga de torcidas. Agita tua bandeira, veste tua camisa, vibra, torce, mas abraça o teu amigo torcedor rival, beija teu amor adversário. Ou então vais ficar no zero a zero.


(Danilo Kuhn)