quarta-feira, 27 de março de 2013

Eu sou uma gota d'água num mar infindo


Eu sou uma gota d’água num mar infindo. Ondas me carregam em seu movimento irresistível, muita vez a contragosto. Raios de sol me iluminam por eu não ter luz própria, me transpassam para me lembrarem da minha insignificância, e ainda assim, sirvo de abrigo a um microcosmos.
Eu sou uma gota d’água num mar infindo. Estranho perceber-se indivíduo e coletivo ao mesmo tempo. Sou gota d’água e mar, e o mar também sou eu. Dia desses, me encantei com o sol de verão e me elevei às nuvens. Tão bom dançar ao sabor do vento, dar-se asas. Mas nem tudo é encanto. De repente o tempo virou, o céu se emburrou e me mandou de volta ao mar. Vez em quando, chover-se é a solução, chorar-se, esgotar-se.
Eu sou uma gota d’água num mar infindo. Busco sempre o horizonte, onde o céu mergulha no mar. Certa vez, me disseram que eu era apenas uma gota no mar do mundo. Respondi que, assim como para iniciar-se uma revolução, ou para um copo transbordar, basta uma gota d’água.
Eu sou uma gota d’água num mar infindo.

(Danilo Kuhn)


terça-feira, 19 de março de 2013

Realidade virtual


Ao navegar na internet, naufraguei em águas turvas. À deriva, fui malhado pela grande rede e me vi enredado às mazelas do vício, pois já não mais sabia viver sem gastar minhas horas em frente ao computador. Minha vida era um Facebook aberto, onde eu compartilhava com nem sei quem meus sonhos mais profundos, alardeava aos meus inimigos minhas vitórias e segredos, confessava a estranhos meus desejos mais secretos, publicava minhas derrotas e como me derrotar, curtia a vida dos outros e me esquecia da minha, espionava os demais e deixava-me vigiar, dava de bandeja a desconhecidos minhas ideias mais valiosas.
Minha memória era compartimentada em Pen Drives e HDs externos. O que fazer quando se perde 80GB de si mesmo? Quantos gigabytes comportam minha alma? Cada gripe é um vírus de computador, um malware, um cavalo-de-troia que me infecta quando minha vacina, ou melhor dizendo, meu antivírus, expira?
Minhas lembranças de infância ainda estão em disquete, e agora meu PC só lê DVD... Meus finais de semana no sítio se tornaram postagens no meu site... Meus jantares e minhas festas se transformaram em fotos no Instagram. Cada coisa que pensava se materializava no meu diário público no Twitter. Eu mesmo, via atualizações, dava minha localização a quem quer que fosse, qual fosse sua intenção em me seguir, sequestrar, roubar.
Hoje, acordei para a realidade, deixei para trás os acessos, os downloads, as visualizações, os compartilhamentos, as curtidas, os comentários, o bate-papo, o e-mail. Vou respirar o ar fresco da manhã, sentir o gosto das frutas apanhadas no pé, o aroma das flores e das suas cores que me acenam, o sabor dos beijos, o brilho do sol, a dança das nuvens e das árvores. Conversas sem teclar. Leituras com o livro nas mãos. Músicas com a magia do vinil. Notícias com cheiro de jornal.
Nada se compara à vida real. Não se iluda com a realidade virtual.

(Danilo Kuhn)



terça-feira, 12 de março de 2013

Eu quero me alimentar de luz...


Nasce da terra fértil a dádiva da vida, espreguiçando-se em tons de verde-broto. Uma infinidade de aromas e formas a crescer, amadurecer. Cada semente que germina é um ser que vem à Terra. Uma alma que muita vez ganha mundo pelas mãos de seu carrasco. Vive a cabresto. Em regime de servidão. Escrava de seu senhor.
Eis que o ápice da vida da frondosa árvore lhe chegou. Enfim, deu frutos. Não há momento mais realizador que este, ver-se prenhe de vida, plena de filhos. A felicidade, que já quase não cabia em si, foi-lhe arrancada por mãos gatunas humanas e por bicos de aves-de-rapina. Sequestro. Roubo. Impunidade.
Nutre-se no ventre materno o leitãozinho porvir, confortável, aquecido. Suas faces serão rosadas, o pelo amarelo-caramelo com meticulosamente artísticas manchinhas negras. Fuçará a terra ávido de descobertas, alheio ao seu futuro já traçado desde antes da gestação. Nascerá para morrer. E não de causa natural. Sua morte já está agendada. Na lista de espera do açougue. Mesmo destino de seus irmãos. Vida nas mãos do carniceiro, no fio da faca se esvai.
Desmamado, o pequenino e desamparado bezerro café-com-leite clama pelo seio materno, o calor do peito, do afago de ganhar o sustento por meio de sua mãe. Chora em vão ao ver o leite quente jorrar em baldes frios como o estanho, sem chegar ao seu destino natural. Alma que coalha. Vida de gado.
A rondar o mar segue o cardume, bailando sob as águas ao som do azul-profundo. Suas escamas celestes refletem o lume róseo-amarelo do sol nascente. Por seu turno, o pescador lhes joga anzóis famintos, vernizes de ilusão, malha-fina a lhes enredar. Debatem-se os peixes à bordo do barco da morte. Roubaram-lhes o ar.
Se Deus assim fez, se esta é a Sua vontade, eu sou um herege. Um herege por discordar da Sua ordem. Um herege por enxergar injustiça na opressão das plantas, na exploração da produção, na manipulação dos rebanhos, nos desenganos do gado, nas iscas.
Por isso, eu quero me alimentar de luz. Que as lavouras sejam libertas. Que os frutos permaneçam em suas árvores. Que os rebanhos sejam os seus próprios pastores. Que o gado derrube as cercas. Que os cardumes deixem os anzóis intactos.
Para que o mundo viva em paz, eu vou me alimentar de luz.

(Danilo Kuhn)


segunda-feira, 4 de março de 2013

Insônia


Dormir é deixar de viver, é morrer por vontade própria, é praticamente suicídio, cerrar os olhos, fechar as cortinas, cruzar os braços, abster-se, acovardar-se, entregar-se.
Enquanto a vida segue lá fora, você se vira na cama para dormir a manhã de domingo. Enquanto o mundo gira, você se deixa inerte para sestear a tarde ensolarada. Enquanto a luta continua, você se rende à letargia vespertina. Enquanto as estrelas cadentes dançam e a lua acena, você se esconde debaixo das cobertas.
A insônia é um presente, embala ideias, rabisca planos, traça metas, rascunha a vida. Insones sonham acordados. Insones acordam madrugadas, despertam noites, alumbram breus.
O sono adormece grandes feitos, evita amores, retarda a produção, encerra trabalhos inacabados, posterga realizações, atrasa, interrompe, paralisa. Quem dorme abandona o mundo, deixa-se à própria sorte, à deriva.
Durma apenas o necessário, nunca tanto quanto você gostaria. Abra os olhos para a vida!

(Danilo Kuhn)