sábado, 30 de junho de 2012

De amigo pra amigo


Amigo é irmão que se escolhe, membro da família elegido por indicação direta, parente por vontade, ente-querido voluntário. Por vezes, nos entende e compreende mais e melhor que nossa própria família, nos ajuda, aconselha e incentiva de maneira mais eficaz e sincera.
Amigo é o abraço que acolhe e saúda. Seja num momento de dificuldade, quando se precisa de acolhida ou guarida, seja num reencontro efusivo e saudoso, quando o que mais se quer é demonstrar o carinho e o afeto de um para com o outro, o abraço aos amigos enlaça.
Amigo não corta, nem tolhe. É capaz de abrir mão de si próprio para benefício do outro. Amigo é amar ao próximo. Amigo é a mão que planta e colhe amizade.
Amigo contigo se importa, é a voz e o ombro que conforta. Amigo ao outro é uma porta, uma porta de um para o outro, uma ponte entre pessoas. Algumas pessoas são quase intransponíveis, não constroem pontes verdadeiras; em lugar, abrem apenas uma fresta da janela da sua casa interior, geralmente para uma espiadinha no mundo dos outros lá fora, e para mostrar o mínimo ou uma falsa impressão do mobiliário de suas salas. A internet, inclusive, se mostra como uma janela ideal para tanto, para cada vez mostrar menos de si e espiar mais dos outros. Mas o dia-a-dia também se mostra receptivo a este tipo estranho de amizade: colegas de aula, em escolas de ensino fundamental e médio e de nível superior, são capazes de passar anos estudando na mesma sala e não estreitar laços; colegas de trabalho podem passar uma vida trabalhando lado a lado, alcançando-se ferramentas ou peças, sem construírem pontes, sem serem portas um ao outro; até mesmo casais conseguem a façanha de viverem juntos sem serem amigos, sem amizade, sem amor.
Evidentemente, não se precisa nem se consegue ser-se amigo de todo mundo. Existem diferenças entre pessoas que impossibilitam tal feito. E também existem amigos que sabemos que não são nossos amigos realmente e, portanto, com estes, não construímos pontes. Isto é normal. Além disso, às vezes também construímos pontes de uma só via, de mão-única, pois não há uma troca, não é recíproco: somos amigos, mas não recebemos amizade de volta. Só vai, não volta.
No entanto, e não importa que sejam poucos, existem os verdadeiros amigos, aqueles do lado esquerdo do peito, aos quais devemos cultivar. Aqueles que mesmo com suas diferenças para conosco, porque ninguém é igual a ninguém, conosco constroem pontes de mão-dupla; para nós são uma porta, uma porta de um para o outro; seu apreço não tem preço. E embora não seja necessária nenhuma troca de favores, invariavelmente a relação de amizade verdadeira é recíproca, é mútua, é uma troca.
Nós seremos bons amigos quando ou enquanto sermos um para o outro um abrigo. Eu contigo, tu comigo, de amigo pra amigo.

(Danilo Kuhn)


segunda-feira, 25 de junho de 2012

Crônica de inverno


         No inverno Sempiterno do meu coração, onde o sol não brilha nem aquece, onde o vento sopra pungente, onde a neve encobre e sufoca toda e qualquer vegetação ou forma de vida, uma rosa de gelo cultivo com esmero. Foi-me rósea herança de uma outra estação, de quando a vida florescia em primavera.
         Rosa cálida de tantas palavras vãs sussurradas ao pé do ouvido do infinito, que ecoaram à esmo pelos abismos do meu peito sem se fazerem ouvidas; rosa pálida de tantos desenganos a lhe esmaecer e lhe roubar o viço; rosa gélida a contemplar amanheceres sem manhãs, sem abrir ao sol suas pétalas de vidro.
         Meu coração já não bate, treme de frio. Ele outrora fora brasa a arder em calor, agora congela, padece em calafrio. Na estação passada, batia com vigor, sempre avante pelos confins dos jardins, porém, desprecavido. Não soubera a tempo que é nestas estações abundantes que se estoca mantimentos: deve-se estar preparado para o inverno do amor.
         Ainda assim, rego com lágrimas a flor; lágrimas que me descem a face num gelado caudal; que me vertem dos olhos estilhaçados e que antes de tocarem o chão já se veem cacos de gelo.
         Quem sabe uma taça de vinho tinto devolva à minha rosa o rubor; quem sabe o frio intenso aproxime corpos gelados; quem sabe a sustância das massas e dos molhos ou o aconchego que a lareira traz à dois e somente à dois, pois do contrário é apenas solidão, reaqueça o coração ou abrande seus tremores; quem sabe, General Inverno, quem sabe. Quem sabe? Hoje, sou apenas inverno à espera da primavera do amor.

(Danilo Kuhn)



terça-feira, 19 de junho de 2012

Terreno pantanoso



Ele pensava estar caminhando sobre uma bucólica e inocente e florida vereda verdejante à luz do sol, embora sem enxergar onde pisava haja vista a noite na floresta. Pensava já ter percorrido aquele caminho vezes suficientes para garantir segurança a seus passos. Ledo engano. Quando deu por si, encontrava-se em terreno pantanoso.
O fato de não se enxergar onde se pisa não necessariamente pressupõe medo quando se conhece o caminho; mas não se saber, de fato, onde se pisa, é angustiante. E pode ser ainda pior: identificar onde se pisa e classificá-lo como perigoso.
Agora sim, a noite parecia mostrar-lhe a verdadeira face sombria e desesperadora. Os costumeiros sons noturnos da floresta ao alcance da sua audição ganharam tons dramáticos quando ele começou a ouvir seus pés atolando-se no lodo sob a água fria e animais mergulhando-se e debatendo-se em todas as direções; animais voadores batiam e rebatiam suas asas entre revoadas e sobrevoadas ameaçadoras, soltando suas vozes ferozes e agudas e estridentes que cortavam feito faca e ecoavam na imensidão oculta; pegajosos mantos de teias de aranha se lhe grudavam na face, enquanto suas donas lhe desciam o pescoço, o qual ele debatia com as mãos rápida e temerosamente; gritos graves e assustadores de animais, à sua impressão, de grande porte, o aterrorizavam; o gélido vento que começara a sobrar doava o pano de fundo sonoro precisamente perfeito para aquela sinfonia do horror.
De repente, ele já não mais conseguia elevar os passos, e sentiu seus pés afundando-se cada vez mais ao pântano malcheiroso e sedento. O desespero agora se transformara em espera, espera pela morte, espera pela hora maldita de finalmente ser engolido por aquele umbral de sofrimento.
No entanto, como um protesto final ante a penumbra do seu destino, a pobre alma ergueu os braços, na esperança redentora de alguma intervenção divina, ao passo que gritou: “Me perdoa, meu Pai”! O infeliz vivente, à beira da morte, bradou ao universo seu arrependimento, como se bastasse para apagar todos seus erros, todo o sofrimento que provocou, todas as verdades que ocultou, todas as vezes que fraquejou.
Mas nem só de erros, sofrimentos, mentiras e fracassos somos feitos, e Ele sabe disto. Nisto foi que o agonizante bate com um dos braços em um galho seco de uma árvore qualquer, e o agarra firme, primeiro com uma das mãos, depois com as duas. Pensou em erguer-se e tentar seguir caminho, mas preferiu esperar o dia amanhecer... Assim, no instante em que o dia clareou, mandando para a toca e para as profundezas todos os seres horrendos daquele purgatório, ele finalmente ergueu-se e pode vislumbrar um caminho seguro de volta para a casa. Antes de segui-lo, ele olhou para cima, a fim de agradecer a Ele, e então viu que, naquele exato galho seco e somente neste e em mais nenhum de todo o pântano, havia uma bela e solitária flor a lhe dar bom-dia. E ele regressou a terra-firme com a aprendizagem que somente os terrenos pantanosos d’Ele são capazes de ensinar.

(Danilo Kuhn)



segunda-feira, 11 de junho de 2012

Dia dos namorados


Eu namoro teu olhar, que te denunciou desde a primeira troca de olhares; namoro o brilho dos teus olhos, que emana o amor que eu e tu vemos um no outro; namoro teus olhos fechados enquanto nos beijamos.
Eu namoro teu sorriso, e suas muitas conotações; namoro teu sorriso bobo ao me encontrares de surpresa, teu sorriso meigo enquanto trocamos carinhos, teu sorriso trêmulo diante a primeira-vez, teu sorriso tenso por ciúme ou preocupação.
Eu namoro teu corpo a entrelaçar-se ao meu; namoro tuas mãos nas minhas a guiar-me num passeio tranquilo, tua respiração na minha de tal forma que já não se distingue uma da outra, teu bater-de-coração ao meu a ditar o ritmo do amor, tua pele na minha arrepiando cada pelo.
Eu namoro nossas semelhanças; gostamos um do outro, cuidamos um do outro, torcemos um pelo outro, desejamos um ao outro, sentimos saudade um do outro, nos preocupamos um com o outro. Que falta me fazes quando estou no trabalho, lavorando pelo meu e o teu e o nosso futuro! Parece que falta um pedaço de mim quando tenho que viajar e ficamos longe... E para ti eu sei que assim também o é.
Eu também namoro nossas diferenças; feijão-com-arroz, queijo-com-goiabada, dia-e-noite, sol-e-lua, luz-e-sombra, som-e-silêncio, eu-e-você, tudo que é diferente assim o é para completar-se. Eu-e-você-Você-e-eu é o nós que nos une, o nó que nos une, nosso laço, nosso enlace, nosso elo.
É tão bom saber que não navego a sós neste mundo de águas turvas; é tão bom saber que não navego sem rumo nesse mar sem farol; é tão bom saber que não navego em vão, enfrentando a fúria das tempestades e a melancolia das águas calmas; é tão bom navegar contigo, navegar em ti, descobrir teus sete-mares, desbravar as tuas terras, encontrar o teu tesouro. Eu quero naufragar em ti!
Namorados: n’amor a dois. No amor, o ‘um’ sozinho não existe. Mesmo enquanto só, o ‘um’ ama a outro ‘um’. O ‘eu amo’ precisa de um ‘você’. O amor pressupõe o dois. N’amor a dois. Eu te namoro, tu me namoras: n’amor a dois.
EU TE AMO! Eu te namoro, e tu me namoras. Somos namorados! Somos n’amor a dois!

(Danilo Kuhn)


segunda-feira, 4 de junho de 2012

O amor durante a espera


amor, durante a espera, se debruça na janela com o olhar apaixonado a redesenhar a paisagem para se tornar parte dela. Imagina-se de mãos dadas a passear pelas veredas verdejantes em busca de morangos silvestres, num abraço a contemplar o amanhecer – sim, o amor amanhece –, num beijo a degustar açucarado néctar – sim, o amor floresce –, em carícias a sonhar sob o céu estrelado – sim, o amor adormece e faz planos –.
O amor, durante a espera, suspira na noite vazia de modo a preenchê-la: o amor não suporta a solidão, nem mesmo a solidão a dois. O amor é um poeta a desnudar estrelas distraídas para se vestir de poesia.
O amor, durante a espera, contempla o sol nascente: na luz de cada amanhecer, o amor se faz presente. O amanhecer de um amor é o mais lindo dos arrebóis.
O amor, durante a espera, abraça a própria sombra: o amor é, ao mesmo tempo, a luz, o corpo e a sombra. Sua luz ilumina-o e projeta sua sombra, uma sombra de dois, de dois corpos. Não há dois corpos sem luz e sombra, nem sombra de dois corpos sem luz, ou luz sem sombra de dois corpos.
O amor, durante a espera, percebe a janela insistindo que o tempo não para, mas logo se distrai  em romantismo. Pessoas sem rosto caminhando lá fora... Por que, na janela da minha vida, você não passa e acena?
O ruído da rua invadindo o silêncio não é suficiente para abafar as batidas do meu coração... O sol da manhã e o vento passeiam, mas se você não passa, não tem graça... Por que, na janela da minha, você não passa e me chama?
O amor, durante a espera, é o tempo passando só do lado de fora, é olhar ao redor e não enxergar nada, é perguntar ao silêncio e esperar resposta, é prender a si mesmo e jogar a chave fora.
Por que, na janela da minha vida, você não passa e acena? Por que, na janela da minha, você não passa e me chama?

(Danilo Kuhn)