Nasce da terra fértil a dádiva da vida,
espreguiçando-se em tons de verde-broto. Uma infinidade de aromas e formas a
crescer, amadurecer. Cada semente que germina é um ser que vem à Terra. Uma
alma que muita vez ganha mundo pelas mãos de seu carrasco. Vive a cabresto. Em
regime de servidão. Escrava de seu senhor.
Eis que o ápice da vida da frondosa árvore lhe
chegou. Enfim, deu frutos. Não há momento mais realizador que este, ver-se
prenhe de vida, plena de filhos. A felicidade, que já quase não cabia em si,
foi-lhe arrancada por mãos gatunas humanas e por bicos de aves-de-rapina.
Sequestro. Roubo. Impunidade.
Nutre-se no ventre materno o leitãozinho porvir,
confortável, aquecido. Suas faces serão rosadas, o pelo amarelo-caramelo com
meticulosamente artísticas manchinhas negras. Fuçará a terra ávido de
descobertas, alheio ao seu futuro já traçado desde antes da gestação. Nascerá
para morrer. E não de causa natural. Sua morte já está agendada. Na lista de
espera do açougue. Mesmo destino de seus irmãos. Vida nas mãos do carniceiro,
no fio da faca se esvai.
Desmamado, o pequenino e desamparado bezerro
café-com-leite clama pelo seio materno, o calor do peito, do afago de ganhar o
sustento por meio de sua mãe. Chora em vão ao ver o leite quente jorrar em
baldes frios como o estanho, sem chegar ao seu destino natural. Alma que
coalha. Vida de gado.
A rondar o mar segue o cardume, bailando sob as
águas ao som do azul-profundo. Suas escamas celestes refletem o lume róseo-amarelo
do sol nascente. Por seu turno, o pescador lhes joga anzóis famintos, vernizes
de ilusão, malha-fina a lhes enredar. Debatem-se os peixes à bordo do barco da
morte. Roubaram-lhes o ar.
Se Deus assim fez, se esta é a Sua vontade, eu sou
um herege. Um herege por discordar da Sua ordem. Um herege por enxergar
injustiça na opressão das plantas, na exploração da produção, na manipulação
dos rebanhos, nos desenganos do gado, nas iscas.
Por isso, eu quero me alimentar de luz. Que as
lavouras sejam libertas. Que os frutos permaneçam em suas árvores. Que os
rebanhos sejam os seus próprios pastores. Que o gado derrube as cercas. Que os
cardumes deixem os anzóis intactos.
Para que o mundo viva em paz, eu vou me alimentar
de luz.
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