segunda-feira, 9 de julho de 2012

Coração partido


Há noites em que a conjuntura do universo, a disposição dos astros e a influência lunar nos tornam mais suscetíveis. Numa dessas noites, Jacó sonhou. Sonhou e pelo sonho deixou-se transportar.
O sol matinal do inverno esquentava os campos, brandamente, e no carro com sua família Jacó teve uma ideia e dela riu-se. Seus familiares riram-se também, mas não se riam por deboche, Mas é mesmo, disse a madrasta, Tu já pensou, indagou animada a namorada, Tu te elege, palavra, afirmou exclamante o pai. A ideia precursora das risadas e dos comentários era a possível candidatura de Jacó a vereador na eleição do ano seguinte. Jacó é conhecido na cidade, um artista, rapaz educado e bem-apessoado e que, além disso, é muito estudioso, sente-se capaz de estudar o que for preciso para tornar-se um bom-político.
Embora sua ideia tenha lhe parecido primeiramente um tanto despropositada, ele aos poucos começou a interessar-se pela mesma. Viu nela a possibilidade de aperfeiçoar-se como ser humano, de poder ajudar as pessoas e a organizar e qualificar sua cidade. Buscou livros sobre política em geral, manuais sobre as atribuições de um vereador e de um bom-político, leis sobre a vereança, estratégias de campanha, guias de administração pública, mas também livros com maior amplitude intelectual, como os de filosofia, de retórica, de teoria do discurso, ciências políticas e sociais, e poesia. Para Jacó, um bom-político deve ser um grande homem, uma pessoa preparada intelectualmente para pensar, levar a cabo e administrar grandes ideias.
Assim, durante horas, dias, semanas, meses, Jacó concentrou seu pouco tempo livre para dedicar-se ao estudo e ao planejamento de sua candidatura. Elaborou discursos, efusivos, construiu argumentações para debates, sempre eloquentes, estruturou minuciosamente suas propostas. Por muitas vezes discordou de seu material de estudo, pois havia sugestões não muito éticas nos mesmos. Noutras tantas, alimentou seu sonho de tornar-se um bom-político e um grande homem, inspirando-se principalmente na filosofia e na arte. Enquanto artista, e, portanto, sonhador, imaginou ações e programas sociais capazes de aprofundar as pessoas, de torná-las mais sensíveis e críticas a partir da Boa-Arte. Vislumbrou organizar orquestra, coral, corpo de teatro e de dança municipais, todos estes com enfoque social e, é bom que se diga, com a devida preocupação com o seu financiamento: programas de incentivo à cultura e estratégias de captação de recursos apontados na ponta do lápis. Ademais, trazia na ponta da língua as várias frentes de campanha que criara não só para a cidade, mas também para o interior.
Porém, nem tudo são planejamento e estudo e boa-vontade, é preciso agir. Jacó, então, entorpecido pela sua empolgação, tratou de filiar-se a um partido político, o da situação na prefeitura da cidade, mas o fez sem a devida reflexão. Ele conhecia o prefeito, conhecia muitas pessoas daquele partido, embora nunca houvesse militado para este. Tratava-se de um partido grande, da situação há um bom tempo, organizado em seus interesses gerais e individuais, muitas pessoas envolvidas com a causa partidária, muitos militantes.
Eis o problema, caro leitor. Jacó sempre foi muito crítico, sempre fez questão de pensar com sua própria cabeça, coisa de artista. Num partido político, as pessoas costumam fechar os olhos aos erros de seus correligionários – embora percebam este contracenso –, defender as decisões partidárias com afinco – mesmo que isto contrarie seus ideais –, e favorecer colegas de partido com cargos ou candidaturas de acordo com sua contribuição e doação, muitas vezes estritamente em campanhas ou em eventos públicos e outras práticas eleitoreiras.
Nem é preciso terminar de contar a estória para concluirmos seu final. Jacó deparou-se com uma realidade não imaginada por ele. Pensou, desde a concepção da ideia, que sua possível candidatura seria avaliada e abalizada de acordo com os termos do merecimento. No entanto, pode observar e experimentar na pele que, numa organização partidária, vários outros critérios, menos éticos, são utilizados para as prévias eleitorais. Sequer teve oportunidade de apresentar suas ideias. Foi orientado a primeiro “fazer seu nome” no partido.
Não vejo, obviamente, apenas demérito num partido político. Partir a política é necessário, partindo do princípio que existem ideias, ideais, ideologias totalmente incompatíveis. O problema é sepultar a ética e a opinião própria em nome de uma lógica partidária contra sua própria ideologia ou ideais ou ideias. É preciso ter estômago para tal.
No caso de Jacó, seu partido é um coração partido. Um artista, com profundidade, não é raso o suficiente para a política.

(Danilo Kuhn)


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